segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Luxúria

Namoravam há alguns anos, namoro sério de juras de amor, gostavam um do outro, talvez se amassem, não interessa, eram jovens e ainda sem grandes compromissos, talvez aquele namoro fosse o compromisso mais sério de ambos. Ele era metódico, demasiado metódico (quase palerma), oferecia-lhe flores, sempre no dia em que faziam anos de namoro, no dia de aniversário dela, e no dia de São Valentim, em mais nenhum dia “porque amo-te e me apetece(s)” , e nunca vermelhas. Ela, bem…ela era feliz, ele não era exactamente um romântico, mas gostava dela, preocupava-se com ela, dizia-lhe que a amava, sorria-lhe, talvez a amasse, eles passavam horas à conversa e depois faziam amor e diziam “eu amo-te”, ou faziam amor e depois passavam horas à conversa.
Os amigos invejavam-nos e as famílias aplaudiam-nos, nunca se lhes tinham conhecido grandes discussões, iam às festas onde estava concentrada toda a nata da cidade, ambos bons vivants, passeavam a dois à beira mar e faziam piqueniques ao fim de semana, é bela a natureza e é tão bom passear a dois, tinham fotos e suporte digital de beijos e carícias trocados em Paris, Viena e Veneza, e mais que isso, tinham recordações, memórias do que tinham medo de perder, amavam-se, pelo menos segundo a definição de ambos da palavra amor, mas faltava-lhes algo, ela sabia o que era, ele ainda não.
Em uma noite, em que ele lhe disse que não ia dormir a casa, o motivo era uma viagem de trabalho, ela sorriu e foi-se arranjar, deixou o cabelo por secar depois do banho, deixou-o solto e ia secando e encaracolando lentamente, usava um vestido já com alguns anos mas que só por uma vez tinha vestido, só o tinha usado naquela noite de que agora se recordava, era completamente preto, tão preto com os seus cabelos ainda por secar, sobressaia-lhe o peito e acariciava-lhe uma pequena parte das pernas, calçou uns sapatos também eles pretos, de salto alto mas não em agulha, de salto alto mas sem exagerar e ser vulgar, não colocou brincos ou colares, apenas uma leve maquilhagem, acabava de adornar os lábios com um batom vermelho por estrear, quando ele chegou a casa e a viu.
Percorreu-lhe a espinha algo de novo, um irresistível desejo de carne, de lhe saborear cada centímetro de corpo, aquele vestido irrecusável, o cabelo dela que lhe molhava as costas deixadas a nu, o batom vermelho vivo em perfeito contraste com a tez clara dela…, mas porque estaria ela assim hoje?, acabou por perguntar-lhe, ela disse, “sabia que virias”…….”como poderias saber?”…..” porque precisava que viesses”, naquele momento, e porque o amor, aliado da carne, a isso leva, acabaram as dúvidas e interrogações, ele fixou-lhe os lábios e depois o olhar, trincou-lhe os lábios, ela mordia-lhe o pescoço como nunca o tinha feito, agora ela sentia toda a sua carne apetecida e desejada, tiraram toda a roupa um do outro e deixaram-se cair no chão frio da sala, ela entrelaçou as pernas no pescoço dele, e ele ia beijando, trincando, precisando de todo o seu corpo, ela, agora em êxtase de desejo, colocou-lhe as mãos sobre as omoplatas e arranhou-lhe as costas de tez morena, com força suficiente para delas escorrerem dois finos fios de sangue que iam brotando no chão, nos ombros finos e claros dela denotava-se com precisão a marca dos dentes dele, e todo o corpo dela os lábios dele tinham marcado não cessando de desejar, ambos gemiam agora, e como lhes sabia bem o gemer um do outro, sabia-lhes a uma compreensão que não pode ser compreendida, a uma satisfação que só em corpos marcados é atingida, e que só com vermelho se pode atingir, e agora os corpos suados e marcados de ambos eram um só, não como já tantas vezes tinham sido, não fazendo amor como das outras vezes, mas fazendo sexo, reinava o desejo pela carne um do outro, como se por uma vez o amor fosse apenas pretexto, e no final,
-Amoro-te
-Amoras-me?
-Sim, porque as amoras eu posso trincar.

Na manhã seguinte, 3 chamadas não atendidas e uma mensagem no telemóvel dela, ela sorriu, e apagou o número.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A aldeia das casas de pedra

Todas as aldeias têm as suas crenças, vida própria que o passar do tempo lá criou, fora de lá todo um mundo, lá dentro, dentro de cada um que aquece as mãos na lareira nas noites frias, ou vai aos bailaricos nas noites de Agosto, todo o seu mundo. A aldeia das casas de pedra não era excepção, tinha vida e era personagem na vida de quem, por lá ter nascido, lá vivia, o pequeno jardim, a fonte, a capela, a taberna do Srº Augusto, o recital dos bailaricos, todos eles ganhavam vida, porque por todos eles passou o tempo, e o tempo não muda, mas mudam eles, mudamos nós. Estávamos no século XIX e o progresso ainda não tinha chegado à aldeia, não havia luz nas lâmpadas ou aquecedores a gás, havia velas que iluminavam e lareiras que aqueciam, em vez da televisão, sobravam as histórias, não havia número nas casas, não eram precisos, todos se conheciam e não chegavam cartas à aldeia, restava a memória.
Em esta aldeia de casas frias de pedra não havia esquecimento, todos eram sempre lembrados, quem na aldeia nascia, na aldeia morria, sempre assim tinha sido, os outros, estavam de passagem. Sofia nascera na aldeia e tinha agora 18 anos, a sua pele era clara e suave, o seu cabelo, liso e completamente preto, os seus olhos eram verdes, não esverdeados mas naturalmente verdes, de um verde tão intenso, que os tornava irresistíveis, era bela, mas era surda, nunca ninguém tinha nascido surdo na aldeia, não a compreendiam, sustentavam-na por obrigação, porque tinha nascido na aldeia, muitos diziam que estava amaldiçoada, a sua família dava-lhe comida e um tecto para ficar, era bela, mas os rapazes afastavam-se, tinham medo, medo da maldição dela, é a única coisa que leva um rapaz a fugir de uma bela rapariga, o medo do que não consegue explicar.
Um dia chegou um médico à aldeia, vinha ver o padre que há já duas semanas estava de cama, as pessoas da aldeia pouco acreditavam nos médicos, mas por vezes ele vinha à aldeia, desta vez não era o médico do costume que chegava, um novato vinha em sua vez, dizia que o outro estava doente e que se chamava Diogo. Dizia a verdade, o médico, já velho, estava doente e mandara-o em sua vez, Diogo tinha acabado o curso de medicina à poucos meses e sempre se tinha mostrado brilhante e um amante do conhecimento e da ciência, chegado à aldeia, auscultou o padre, mediu-lhe a temperatura e sem entrar em explicações alongadas deu-lhe 2 comprimidos que ninguém sabia o que eram e deixou-lhe uma caixa, também de comprimidos, que explicou ao padre serem para tomar um por dia, sempre depois de almoço, e sempre durante 7 dias, e disse-lhe que iria melhorar. Depois de poucas palavras proferidas e sempre de rosto fechado, preparava-se para abandonar a aldeia, quando se cruzou com Sofia, de imediato se sentiu atraído por ela, afinal, ela era bela, e ele, sem hesitar dirigiu-se a ela dizendo “olá desconhecida”, ela primeiro fixou-lhe os lábios para tentar entender o que ele dizia e ela não ouvia, depois utilizando uma caneta já velha e um pedaço de papel escreveu “olá desconhecido, não te ouço, nasci surda, tento perceber-te lendo-te os lábios, não te falo, por nada ouvir nunca falei”.
Diogo, leu a mágoa e dor de não poder ouvir e não saber falar, naquele pequeno pedaço de papel, e pegando também num pedaço de papel que tinha no bolso do casaco e em uma caneta, deixou de falar e escreveu, “ não tem mal, escrevamos então, tudo o que pode ser dito pode ser escrito, o que não se pode escrever também ainda não inventaram palavras para o dizer”, ao ler isto, Sofia corou, pela primeira vez o seu coração batia acelerado, Diogo era bem-parecido, mas havia rapazes na aldeia bem mais bonitos que ele, era o seu conhecimento, cultura e vivências que o distinguiam dos outros, ele não acreditava em bruxarias, percebia qual o problema de Sofia, ele não tinha medo dela, e ela era bela, e agora, bastando dois pedaços de papel trocados, ela sentia-se compreendida, sentia-se atraída e protegida. Sofia acabou por pegar em mais um pedaço de papel e responder a Diogo,
- “Por nunca ter ouvido não sei o que perco por não ouvir, mas sei o que sofro por os outros saberem que não ouço, têm medo de mim, têm medo da diferença e respondem-lhe com indiferença”
-“ Por não ouvires apenas perdes o que acreditas perder, vês o mundo e tens livre-trânsito para sentir, por vezes gosto de acreditar que só inventaram as palavras porque se tinha preguiça de ler um olhar”
- “ É belo o que escreves, e agradeço-te, cada palavra, mas custa-me a crer, a forma como me olham, assusta-me, faz-me duvidar, do que sou, do que posso ser”
-“ Por um momento esquece os outros, lembra-te de ti, és bonita, perspicaz, sonhas acordada, tens uma vida por viver, se os outros têm medo, eles que vivam metade”
-“ Hum…passando a acreditar nas palavras que me escreves, e porque não tenho preguiça, joguemos então”
-“Joguemos? Joguemos a quê?”
-“Terás que adivinhar meu querido”

Ela fixou-lhe o olhar, Ele corou e desviou os olhos, Ela insistia, Ele com um leve sorriso, olhou de soslaio, percebendo que ela continuava, inspirou fundo e retribuiu o olhar, De um lado olhos azuis quase cinza, Do outro olhos verdes, absoluta e desconcertantemente verdes, Ela acabou por sorrir, mordiscou o lábio e olhou para baixo, para as mãos dele, tremiam um pouco, Ele agora com um sorriso carente de certezas olhava-a hesitando, Ela voltou a fixar-lhe o olhar, agora os lábios dela desenhavam uma expressão indecifrável, entre um sorriso que começava a denotar covinhas nas bochechas, e desejo, agarrou-lhe suavemente as pontas dos dedos, Ele beijo-a.

Sofia estava feliz agora, ela ainda não amava Diogo, conhecera-o hoje, e em um dia não surge amor, mas ainda sem o amar, já precisava dele, ele por ter estudos e perceber a ciência, compreendia-a e por não ser cego, queria-a, afinal, ela era bela.

- “ Se pudesse parar o tempo, parava-o agora.”
- “ Porquê agora? Porque não amanha ou depois de amanha?”
- “ Porque desde que me lembro, sempre soube o amanhã, por cada dia que passava, o mesmo desprezo, o mesmo medo, a mesma solidão, contudo, o amanha que eu sabia ontem, não é o que tenho hoje, agora que te vi, que te conheci, que te beijei, percebi que não quero voltar a saber o amanha.”
- “ Eu se pudesse parar o tempo, não o parava, se o tempo parasse deixaria de haver memória, não teríamos a recordação dos olhares, dos lugares, dos sorrisos, dos cheiros, das lágrimas e histórias, e seria triste não ter memória.”
- “ Nunca percebi muito bem as regras do tempo, imagina, tu conheces alguém, nesse momento sentes-te atraído, podes aos poucos ir conhecendo essa pessoa, com o passar das horas e dos dias podes começar a gostar dessa pessoa, podes acabar por te apaixonar por ela, com o tempo pode surgir amor, pode durar uns meses ou uns anos, ou pode durar para sempre, se é que existe sempre, mas para acabar com tudo, para acabar com uma, duas ou 3 vidas, basta um segundo.”
- “ Nunca tinha pensado assim, dói pensar assim, mas é verdade, e por isso podíamos roubar o dia de hoje ao tempo”
- “ E como o faríamos?”
- “ Fazendo deste dia só nosso, não contando a ninguém o que vivemos hoje, nem ao tempo, o tempo não nos pode tirar o que não sabe que temos.”
-“ Um dia só nosso, não do tempo, ninguém para o criticar, apreciar, julgar, nada para um dia o apagar, porque não…”
- “ Assim posso escrever-te a verdade, ninguém para a julgar, durará para sempre, e a verdade é simples, olhei para ti há pouco, e achei-te bela, agora olho para ti, e preciso de ti”
-“ A verdade…só se inventou a verdade porque surgiram as mentiras, antes disso, não se pedia a verdade, não se pediam beijos de amor.”
- “Não?”
-“ Não era preciso” (beijo-o)

Assim passaram horas, beijando-se, acariciando-se, escrevendo-se, conhecendo-se, foram caminhando até ao pé de um pequeno rio que passava perto da aldeia, o sol começava a pôr-se, estavam sozinhos, em absoluto silêncio, Sofia acabou por dizer a Diogo que a entristecia, neste momento, não ouvir o som da água a ranger nas pedras, ou dos pássaros que recolhiam às árvores para dormir, Diogo disse-lhe que quando olhava para ela, quando tocava nela, deixava de ouvir cada um desses simples sons, ela sorriu, o sol ia desaparecendo lentamente, a água do rio passava constante, polindo eternamente as arestas das pedras, talvez pelo encanto do momento, talvez pela feliz inocência da juventude, talvez porque Sofia precisasse de Diogo, ou talvez por ela ser bela, acabaram por trocar juras de amor eterno, acabaram por se amar naquela noite, e por adormecer no mais absoluto silêncio da noite, pouco antes do nascer do Sol ela acordou, estava sozinha.
Ontem Diogo ao ver Sofia logo desejou ter sexo com ela, Sofia, ao conhecê-lo, não o amou logo, não podia, desejou que ele a levasse da aldeia, que a levasse para longe do medo, da repulsa, da desaprovação dos outros, ele conseguiu o que queria, ela não. Hoje Sofia voltou a saber o amanhã, estava triste, como sempre estivera, mas não amargurada com Diogo, ele por perceber a ciência e a fisiologia humana, compreendeu-a, não teve medo, ela era bela, desejo-a por isso. Entre eles, a inteligência e desejo de ambos, o sebastianismo dele, a beleza dela, levaram a momentos de encanto, palavras de romance, juras de amor, acabou em sexo, nunca houvera amor, o amor não surge num dia e meia-noite. Ela, por nunca ter sido amada, pela indiferença, medo e repulsa dos outros, não conseguia odiar aquele que por saber a verdade, se correspondeu com ela à distância de um olhar, a encantou e deixou-se encantar, e a quis por meia-noite, mas que por ter medo e ser animal, a deixou para sempre sem avisar.
Sofia continuou na aldeia, nunca falou de Diogo a ninguém, tudo permanecia na mesma, o medo, aliado do tempo ia vencendo aos poucos mas sem retorno, apesar de ela não viver além de sobreviver, o tempo não tinha misericórdia, nunca tem, passava por ela, e com ela trocava mais um dia de tristeza por menos um dia de vida, Sofia nunca saiu da aldeia, talvez se tivesse saído, tivesse conhecido outros rapazes, outros homens, alguns teriam por certo medo da surdez que não compreendiam, talvez todos os outros se interessassem somente pela sua beleza, por seu corpo, somente por meia-noite, ou talvez surgisse amor, amor não só entre amantes, também talvez o amor da amizade de desconhecidos e desconhecidas que ela nunca conheceu, mas ela, talvez por não mais acreditar, ou talvez por também ela ter medo, nunca saiu da aldeia.
Com o passar dos anos, foi envelhecendo, surgiam rugas, cabelos brancos dentes amarelados e depois escurecidos, outros desconhecidos foram passando pela aldeia, mas agora, tantos anos passados, ela já não era bela, acabou por passar os seus últimos dias, como todos os outros da sua vida, tristes e vazios, todos esses miseráveis dias condicionados pelo mesmo, pelo medo, o único que assim não foi, roubou-o ao tempo, e assim no final de tudo, foi tudo o que lhe restou, quanto ao Diogo, ele não era da aldeia, nunca o foi, dele não há memória, de onde ele era, as casas já não eram de pedra.