terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O herói e o desertor

O herói

“ Não posso fugir, não tenho esse direito, tenho medo, tanto medo, e nem isso devia ter, pelo menos não tanto, os meus camaradas, os meus irmãos, estão aqui comigo, e eles também não fogem, aceitam matar e morrer, porque assim tem mesmo que ser neste sítio onde estamos. Se perdermos esta guerra eles irão entrar no meu país, e para se vingarem dos deles que aqui morreram, irão matar crianças nossas, subjugar todos os meus, todos os que amo, e amarei, destruir casas, talvez a minha própria casa com os meus pais e pequeno irmão lá dentro, talvez a casa dela. Claro que rezo para que tudo isto acabe rápido, e para sobreviver pelo menos semi-ileso, tudo o que for continuar com dois braços e duas pernas e sem ficar demasiado deformado já será bastante bom para o que aqui se passa. Ainda ontem à tarde mais um camarada meu morreu numa emboscada.

Após uma explosão que também a mim cegou por uns instantes e fez com que os meus ouvidos ainda agora mantenham um agudo zumbido, ficou horrivelmente aberto e mesmo esfrangalhado, especialmente na zona do tórax e do abdómen, e apesar do insuportável calor que nos queimava todos os poros, ele gemia no chão e contorcia-se. Julgo que não de dor, as feridas eram demasiado profundas para que as extremidades nervosas ainda ordenassem alguma coisa, mas de frio e tristeza. Não dizia uma palavra, talvez não o conseguisse de todo, apenas soluçava e tentava recompor-se sem qualquer sucesso, os olhos tentavam de forma desesperada manter-se abertos, corriam-lhe lágrimas no rosto, os olhos dele tentavam viver, e as partes pretas dos olhos, rodeadas de uma íris verde clara, giravam em redor à procura de ajuda e de conforto, ou de qualquer coisa, que não o fim, até tudo o que havia de vida nele as largar. Talvez devido ao insuportável calor, ainda ele respirava aos solavancos e a vida lhe tremia nos dedos, já as moscas se tinham começado a apoderar da sua carne que tinha começado a cheirar a morte, eu estava com os olhos quase lágrimas, agarrado a ele, a ver a vida partir, tais eram as peripécias que a guerra já nos tinha feito passar juntos. E até o levantarmos daquela areia fina e árida, e o colocarmos num saco, sim, num miserável saco de plástico, a mancha de sangue em redor dele ia aumentando e impregnando-se e perdendo-se na areia, cobrindo agora a maior parte dos pequenos bocados dele, de carne e osso, e entranhas, que tinham voado aquando da explosão, e tudo isso atraia agora ainda mais das miseráveis moscas.

Tenho neste momento a absoluta certeza que a guerra é a coisa mais inumana que existe, matar-mo-nos assim uns aos outros, apenas porque nos dão ordens, somos peões, simples peões, podíamos pôr agora mesmo fim a tudo isto, sem beijos e abraços, que a memória não me permite abraçar os que mantaram os meus irmãos de armas, mas com lealdade. E todos voltaríamos para as nossas casas, para as nossas pátrias, sem o sentimento de vitória, de conquista, e de poder, mas vivos, e quão desprezada é a vitória, a conquista, e o poder, que é viver. Ou podíamos mesmo ter evitado tudo isto, preferia mil vezes o vexame das sanções económicas e da escassez de ouro, e até de Sol, na minha pátria, do que isto a que fazem um homem sujeitar-se. Na dúvida da existência de um inferno em outra vida, decidiu-se, por via das dúvidas, criar um inferno nesta mesma vida, matar, ver morrer, ver matar, sofrer tanto, e tudo isso, para mesmo em caso de vitória, nunca mais voltarmos a ser os homens que teríamos sido. Mesmo aqueles que não voltam num caixão, e que em vez de intestinos não têm um saco e em vez de olhos, óculos escuros, mesmo esses, nunca mais dormirão sem pesadelos, sem sobressaltos, sem medo e remorsos.

Mas a escolha nunca foi minha, ninguém me perguntou se queria nascer no meu país, se queria amá-lo tanto quanto o amo, embora nunca tanto como amo os que lá deixei, ninguém me perguntou se queria esta guerra, e se queria vir, e mesmo que tivessem perguntado teria dito que sim, porque nunca tinha estado em guerra nenhuma, considerava-me valente e por isso viria com confiança, peito cheio e um sorriso na cara, como aliás, acabei por vir. Mas agora que aqui estou à já 11 meses, daria tudo para voltar a casa, voltar para o junto da minha família, ou o que restar dela, com o que resta ainda de mim, e para junto dela.

Só não deserto porque não sei como suportaria se fosse capturado pelos meus próprios camaradas em plena fuga, ser preso por tentar fugir enquanto eles lutam, e dão a vida que têm pelo nosso país, pelos nossos, pela minha família e por mim, a decepção do olhar deles pousada em mim, o desprezo, e até mesmo a repulsa, seriam de uma crueza indizivél. Mas mesmo isso eu conseguiria suportar, suportaria tamanha decepção sobre mim, suportaria que cuspissem em mim, e me tomassem por um cobarde egoísta que quer é saber dele, e tudo isso suportaria apenas por causa deles, dos meus pais, do meu irmão mais novo, que tem em mim um modelo, e por causa dela, a todos eles jurei em lágrimas regressar, e a minha mãe, entre risos forçados, lá foi dizendo que voltar dentro de um caixão não contava. E ainda mais indizivel que qualquer olhar, é dizer quanto os amo a todos eles, e o quanto me custa ver-me a morrer aqui todos os dias. E assim só não deserto, só não fujo, e dou mais um passo no sentido de quebrar a promessa que lhes fiz, porque se por acaso conseguisse fazer os mais de mil quilómetros que me separam de casa, sem ser apanhado pelos meus outrora camaradas ou por uma qualquer emboscada. E uma vez chegado à minha pequena cidade me conseguisse esconder até tudo isto acabar, nunca conseguirira viver carregando o peso dos meus camaradas mortos e destruidos depois de eu ter desertado, e eles terem permanecido com talvez ainda menos vontade que eu de lá ficar, e promessas ainda mais fortes aos seus.

E claro que poderíamos todos desertar, e ir para junto das nossas famílias, e para evitar um massacre, os nossos inimigos, ou os homens do outro lado das trincheiras, poderiam desertar também, e todos viveríamos, sem mais mortes nestas estúpidas areias áridas, mas isso seria um milagre, e a primeira coisa que se aprende quando aqui se chega, é que na guerra, não há milagres. Assim, nunca poderei desertar, que por mais injusta e absurda que a guerra seja, eles, e os outros também não escolheram estar aqui. ”

O Desertor

“ Vou fugir, vou fugir com o que ainda resta de mim, falarão de mim como um traidor, e mais que isso, com tristeza e rancor quando souberem que fugi, alívio, se for apanhado. E talvez muitos sintam verdadeira pena e tristeza, por certo, pelo menos alguns sentirão, se for morto, mas se souberem que escapei ileso à longa tormenta que me aguarda, aí, uns mais, outros menos, todos sentirão inveja. E claro que nada disso me agrada, mas, mas sou egoísta, eu quero desesperadamente viver, devia amar os meus camaradas, os meus amigos, e que aqui são como irmãos, a ponto de dar a vida por cada a um deles no momento em que tal me fosse exigido, porque a vida de quem segue com uma arma ao meu aldo, ainda mais desidratado, exausto, sujo e farrapo humano que eu mesmo, vale exactamente o mesmo que a minha, quase nada, mas mesmo assim indizivelmente mais do que a vida dos que para aqui nos enviaram, e assim, ao sentir que não daria de bom grado a vida por cada um deles, ou mesmo pela vã esperança de os tentar salvar de uma morte certa, sou já um traidor, não aos olhos deles, como serei quando souberem que fugi, mas aos meus, já neste instante.

Podia dizer heroicamente que fujo para não ter que matar mais seres humanos, tão jovens, e muitos ainda com esperança na vida, a que deste lado chamamos de inimigos e recebemos com granadas e chumbo, mas qualquer um que passou pelo que eu já aqui passei, saberia que mentia. A compaixão, o amor, e mesmo a lealdade para com o inimigo não moram aqui, essas morreram, assim como morreram, os mais eloquentes filósofos, e mais débeis soldados, que aqui chegaram, o que aqui se vive é absurdo, e impossível de dizer concretamente, não há palavras que digam o que nós, todos nós, conseguimos nestas circunstâncias, infligir uns aos outros, por vontade. Assim como paradoxal é conseguir explicar porque vou fugir na próxima madrugada, faço-o por eles, e por ela, explico-o, ou tento pelo menos, para mim próprio, tenho que o fazer, porque aos meus próprios olhos sou um traidor.

Prometi-lhes que voltava, bem, isso todos prometemos antes de vir, teria sido impossível vir se não prometêssemos, e se por pelo menos por um momento, não acreditássemos também, mas não são as promessas que me fazem precisar de continuar a pelo menos respirar, porque não são as promessas que nos impedem de morrer. O que me fará desertar na próxima madrugada, e tentar sozinho atravessar mil quilómetros de terreno cuspido pelo diabo, é o que já tive, e tenho medo de não voltar a ter, e para isso quer voltasse dentro de um caixão, quer profundamente estropiado, seria igual, um caixão enterra-se, e um profundo estropiado não mais poderá ser atingido pela mesma profundidade do amor que recordo, e são sobretudo duas, as coisas que agora recordo. O olhar que os meus pais poisavam em mim sempre, como se, eu apesar de ser um miúdo normal que não tinha grandes notas na escola, e não era também especialmente bonito ou filho exemplar, fosse o ser mais especial do universo, e com um destino radioso à minha frente, fazendo assim com que acreditasse que todos os sacrifícios que faziam por mim, de sorrirem, quando lhes apetecia chorar, de serem pequenos quando também eles sonharam ser grandes, valiam a pena, fizeram com que fosse amado sem saber o que era o amor. A outra é o amor de uma mulher, o amor dela, a nossa pele queimou emaranhada ao Sol, e o Sol soube, sujeitou-se à chuva e ao gelo, e a chuva e o gelo souberam, tudo isto na mesma amena noite, no mesmo tumultuoso ardor, porque a carne é soberana dos elementos, e apenas ao amor aceita como senhor.

Não posso contudo dizer que fujo da guerra, porque toda a vida é uma guerra em que todos sofrem, e sofrem muito, que ninguém vive sem sofrer, ou a sofrer pouco, mas em que felizmente as leis humanas, censuram quem atenta contra o direito à vida. Fujo desta guerra, espectáculo de sangue comunitário, para que me enviaram e para a qual vim junto com os meus camaradas com um estúpido sorriso, porque pensávamos que íamos deixar de ser miúdos para nos tornarmos em verdadeiros homens, mas este abafado horror com o cheiro apodrecido dos restos de corpos ainda espalhados, junto com o medo de sermos os próximos a morrer e a ânsia de sermos os próximos a matar alguém, mais não fez do que tirar-nos aos poucos o que realmente tínhamos de homens, de humano. Isso, junto com a revolta de estar aqui neste jogo em que se morre a sério, em que todo o corpo treme e em que o chumbo e os estilhaços nos rasgam a nossa carne, a mando de alguém, ou de alguns, que com promessas de medalhas e de uma profunda honra que me cobriria, me enviaram para aqui, para matar, e escorraçar outros, a quem alguém, ou alguns, também para aqui os mandaram, sem que nenhum desses “semideuses” saiba, ou sequer se tenha importado em saber, o quanto valiam as nossas vidas.

Tudo isto que é tão absurdo e louco, todos nós somos loucos mas não tanto nem tão irremediavelmente, custar-me-á na próxima madrugada mais um pouco de mim, perderei a lealdade para com os iguais a mim, que não podem fugir, não todos pelo menos, que neste indistinto ponto de não retorno, nunca podem fugir todos. Assim, mesmo que a sorte não se canse de me guiar a partir da próxima alvorada, eu terei traído a morte, e tão dependente a vida é da própria morte, que não mais continuarei a viver, vou existir com eles, e com ela, até que venha o esquecimento.”

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Outono

A velha descobriu que ainda estava viva no Outono, o Verão, como sempre, fora terrível, tudo sempre igual lá fora, os corpos sempre tão despidos, e por vezes bonitos, as almas essas, sempre tão escondidas.

Estava já num profundo desespero mumificante, quando por fim a vida começou a florescer. Começou com um pôr do Sol, sim, isso mesmo, um singelo e cíclico pôr do Sol, que pela primeira vez em tanto tempo, e aqui é de referir que, a velha, comportando-se como todos os velhos se comportam, dizia até que era a primeira vez que acontecia com tanta intensidade, impunha ao céu que o levava uma tonalidade arroxeada. Quer dizer, havia quem o olhasse e visse azul, outros viam, cor de rosa, e havia até quem jurasse que era cor de tijolo, era de qualquer cor, porque era de todas as cores, e era de todas as cores, porque lá laranja não era, e de tantas vezes ter sido laranja, de um belo e intenso laranja, ai quantos beijos deu a velha enquanto o laranja se punha no mar, o laranja deixou de ser cor.

Lentamente começaram a surgir os sobretudos e os guarda chuva, as terríveis molhas ocasionais, que nos gelam até aos ossos e nos fazem desejar chegar a casa, tomar um banho quente e embrulhar-mo-nos numa manta, ou então, embrulhar-mo-nos logo directamente numa manta. Claro que a velha já devia ter juízo e não sentir saudades destas molhas que sem umas cápsulas de vitamina C bem que podiam causar uma constipação. Chegaram aquelas misteriosas rajadas de vento que nos causam arrepios quando estamos na rua, e um estranho prazer quando estamos no aconchego dentro de uma qualquer casa, ou ainda, uma estranha nostalgia se estivermos sozinhos dentro dessa tal, qualquer casa. Religiosamente vieram também os assadores de castanhas na rua, agasalhados por roupas velhas e rotas, mas que magicamente parecem, ainda assim, quentes, com um ar sempre consternado, e envelhecido, julgo até que já nascem com pelo menos meia idade, e com as mãos e o próprio rosto, tão cheias de cinza, tão perto de serem a própria cinza, que nos lembro dolorosa, ou nostalgicamente, e aqui deveríamos poder escolher desejava a velha, aquilo para que todos caminhamos.

Foi assim que num dia de Outono, ontem mesmo, para tentar criar alguma nostalgia no caro leitor, a velha, agora felicíssima por ainda por aqui andar em mais um Outono, enquanto passeava, lentamente, que isto reumatismo, poupa a alma, mas corrói os ossos, por uma pequena floresta, em que as árvores travavam contra o vento e contra o tempo uma digna batalha por cada folha que surpreendentemente apresentava as mesmas cores de um pôr do Sol Outonal. Mas que apesar, de digna, iam perdendo implacavelmente uma por uma, roubando assim aos pobres dos pássaros mais um subtil refúgio da milionésima gota de chuva que, e falo só pelo dia de ontem, lhes acertaria em cheio na testa. Bem a verdade é que foi assim, que a velha voou, como não voava desde o Outono passado, e não voou nem para muito longe, nem para muito perto, mas voou, que isto os pássaros nascem na primavera, no verão ficam pelo ninho, mas é no Outono que apreendem a voar.

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quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Diálogo Idiota

-Hey ( hey?? Mas serei eu ainda mais parvo do que pareço, hey é como dois camionistas se cumprimentam um ao outro quando já não se viam à 15 dias, hey é o que um idiota diz quando não tem mais nada para dizer, e é idiota o suficiente para pensar que dizer hey é mais “cool” que dizer “olá”).

-Como? (como, como o quê?? Sei lá que queria eu dizer, nada, esqueci-me, queria é que me facilitasses a vida e não fizesses perguntas difíceis, será que não repares que já me estou a atrapalhar todo, até os joelhos já me tremem).

- Não, é que, é que..estamos à já tanto tempo a ter esta formação juntos e ainda não tínhamos trocado uma palavra. ( Há tanto tempo? Que desgraça fui eu dizer, a formação começou anteontem à tarde).

- Isso não é bem verdade, ainda ontem me disseste até amanhã. (Bem, pelo menos lembra-se disso, mas agora é que não tenho mesmo o que dizer, vai pensar, aliás já está certa que sou um palhaço).

- Sim, pois.. claro, mas isso são palavras que não contam, quando se diz algo como “até amanhã” o som sai sem ser pensado, e antes de chegar ao ouvido desejado, já quem o disse virou costas sem esperar qualquer resposta. (Mas que me deu agora para tentar romantismos fáceis com as palavras, agora de certeza que me toma por um autista romântico ou, pior, por um presunçoso desesperado).

-Queres dizer algo de concreto com isso? (Sim caro leitor, a nossa heroína era, isso mesmo, qual palavra proibida e fechada numa caixa de Pandora por uma sociedade de meias palavras, objectiva. Claro que o cobarde de serviço, mas não menos protagonista da história, perdeu neste exacto momento qualquer capacidade sináptica relevante, pelo que me será impossível a partir de agora continuar a transcrever os seus idiotas pensamentos).

- Quero, quero dizer que é impossível olhar-te e ainda assim dizer algo que faça sentido no final.

-Não arranjas uma forma mais objectiva de dizer que o que queres, mesmo agora, e aliás já desejaste ontem e anteontem, é ir para a cama comigo?

-Isso é uma certeza absoluta para ti?

-Agora é sim, ainda podia pôr em dúvida jogares em outro campeonato, ou mais grave que isso, não me achares piada, mas depois de ver como tremias à uns instantes atrás, e aliás, ainda tremes um pouco, sim, agora é uma certeza absoluta.

-Bem, admitindo então que tal fosse verdade, isso implica que a nossa conversa fique por aqui? ( Aqui tenho que dizer, que apesar da capacidade sináptica do nosso cobarde se ter ido à muito, neste instante passou-lhe pelo pensamento uma ténue visão de sexo fácil, intenso e a curto prazo com ela, tendo até imaginando, além claro, do acto, os longos, e agora soltos, cabelos cor de fogo dela, a mancharem de cor uns quaisquer lençóis claros, e a taparem, parcialmente, e apenas com finos fios, os seus peitos nus).

- Não, quer dizer, apenas se tu assim quiseres que seja. Nós, tu, eu, todos nós, somos bárbaros animais com uns anos de vivência numa sociedade que nos maquilha, mas apenas isso, maquilha, pode mudar o que fazemos, como fazemos, e até aquilo que conseguimos, mas nunca o que intimamente sentimos e desejamos, um homem, e não falemos agora de excepções, quando vê uma mulher que define como atraente, a primeira coisa que pensa, não é em palavras bonitas ou em oferecer-lhe um jantar, mas sim, em sexo. Bem como uma mulher, quando se cruza com um homem que lhe desperta minimamente a atenção, o que logo faz, ainda que inconscientemente talvez, é averiguar se ele representa a melhor opção, dentro do leque de escolhas de que dispõem. É isto que nós somos, primatas camuflados por palavras bonitas e ramos de flores, por isso, e sim eu tenho a secreta convicção e arrogância que sou um ser um pouco superior à maioria que faz a multidão, podes dizer-me o que realmente pensas, que tal não irá antecipar ou adiar a hipotética hipótese de irmos para a cama um dia, pelo menos, farei um sincero esforço para que assim seja.

- Não sei se alguma vez vou sentir algo de sério por ti, certo é que de desejo apenas, ninguém vive, mas sobrevive-se, e até se ri um pouco e lá vai dando para procriar.Tomamos um café amanhã? (Neste momento a nossa heroína, com os olhos um pouco emocionados e até molhados, não muito, que recorde-se ela era objectiva, sussurrou ao ouvido do cobardolas “sim mas, eu quero viver”).

terça-feira, 23 de agosto de 2011

O assassino

“A vida é uma tragédia quando vista de perto e uma comédia quando vista de longe”

Segurava com suavidade entre os dedos bem cuidados e bastante peludos, um copo do melhor vinho, ia-o bebendo sem pressas, degustando cada novo aroma a chocolate preto e frutos silvestres, permitindo ao álcool percorrer-lhe as entranhas, enquanto fumava um delicioso charuto e as rugas ainda viçosas que tinha em redor dos lábios, se vincavam e afundavam na pele, de cada vez que puxava o fumo para dentro de si. O calor que fazia naquela sala, juntamente com as circunstâncias, tornava-se insuportável, pelo que acabou por desabotoar o botão da camisa que lhe comprimia dolorosamente o pescoço, e soltar um pouco a gravata, acabando ainda por desabotoar também o último botão da camisa que lhe comprimia o abdómen protuberante, demasiado cheio pela refeição farta de há pouco. Em que se deliciara com carnes tenras, e novas que sabia terem testemunhado apenas crueldade, que tinham sido chicoteadas, pontapeadas, obrigadas a comer quase até rebentarem, até atrofiarem até não se mexerem, e até mesmo paradas entrarem no espaço das outras, de tanto crescerem, em tão pouco e nojento espaço. Tudo isso dava-lhe um certo sentimento de “topo da cadeia alimentar” que sempre lhe agradara bastante, arrotou baixinho.

Depois de subir num luxuoso elevador de chão de granito preto até ao segundo piso, fornicava agora uma qualquer loira, nova, muito nova, duvido que tivesse 18 anos, era bonita, não de uma beleza atroz, nem sequer bela tão pouco, não poderia sê-lo, não assim. Mas era tenra, firme, e bem esculpida, e sorria para ele, enquanto ele entrava nela, e o seu abdómen, proeminente e peludo, lhe raspava nas virilhas impecavelmente brancas, e ele, sabendo que ela fingia o sorriso, e fingia o prazer, tentava entrar com mais força, com violência, apenas para provocar dor, e buscar em tal dor o seu maior prazer, e notando que não chegava, que ela, estúpida, continuava a sorrir para ele, fingindo gostar, ou seja, sendo-lhe quase indiferente. Nesse momento apertava-lhe com a força de uma tenaz, a fina e imaculada pele que lhe rodeava a boca e os dentes, pressionando cada vez mais, enquanto ela recusava em queixar-se e parecia continuar impávida, e quando finalmente ela se queixava, implorava que ele parasse com aquilo, quando começavam a surgir manchas de sangue pisado por debaixo dos dedos dele que a amassavam, ele tirava mais duas ou três notas da carteira, e colocava-as lentamente, ao lado da cabeça dela, por cima da mesa onde a domava, e continuava a fazer o mesmo. Já sem a penetrar tão pouco, já exausto, gotas do seu suor arfante de suíno caíam por todo o corpo bonito dela, e até as suas faces teimavam em notar-se rosadas, apesar de a pele da cara, de barba impecavelmente feita, começar a ficar gasta e inexpressiva, apesar de tudo isso continuava, enquanto via as manchas de sangue pisado alastrarem por debaixo dos seus dedos ganhando uma tez cada vez mais arroxeada e definitiva, para que depois do sexo, depois de ele se ir, ela não o desprezasse, não o esquecesse, não fosse tomar um banho e ficasse tudo bem, mas para que ela o temesse, e preferencialmente até odiasse.

Seguiu directo para o seu jacto particular, para uma curta viajem até ao aeródromo já perto de sua casa, nestas tranquilas viagens, em que aproveitava sempre para consultar um resumo da principal actividade bolsista do dia, o que mais lhe agradava era o sentimento de plena convicção de que estava a gastar em farta abundância um dos vastos recursos naturais que irão fazer falta uma tremenda falta às tristes gerações que aí vêm, e de poluir ainda um pouco mais o planeta, apenas um pouco mais, mas imaginava deleitado, que se todos pensassem assim, e ele sentia secretamente que pensavam, os próximos a nascer nunca iriam poder respirar um ar sinceramente puro, ou mergulhar em águas límpidas e imaculadas como as que agora ainda lutam por resistir, e iriam por isso invejá-lo, desejar ser ele, e em outros dias até mesmo odiá-lo como a loira, nessa altura já velha e podre, o iria continuar secretamente a odiar, e por isso a passagem dele pelo Mundo não seria nunca indiferente, ou até mesmo passageira, e apesar de constantemente a tossir e a cuspir lagosta, por pôr demasiado na boca de cada vez, contemplava agora as estrelas de um céu estrelado, das quais estava agora 5 km mais perto do que todos os outros que o odiavam e odiariam.

Finalmente começou-se a despir, para se ir deitar na sua enorme cama de lençóis de fina seda e colchão, ortopédico, com comandos electrónicos vários, modo de massagens, e ajustável à fisionomia de cada corpo, que todos os dias o fazia orgulhar-se das terríveis dores que sentia nas costas e da escoliose que começava a desenvolver por passar todo o dia sentado e debruçado sobre gráficos e tabelas, só por saber que tantos miseráveis, de preferência pretos orfãos, dormiam em palheiros cheios de carraças ou no chão frio e imundo. E há medida que tirava cada peça de roupa, contemplava-a, tocava-a com suavidade, quase que amando-a, ou amando-a mesmo, caso esta tivesse a firme convicção de esta ter custado o equivalente a pelo menos um ano de trabalho de um qualquer explorado e humilhado, de preferência criança. Como o quarto era também ele enorme, e se encontrava sozinho esta noite, tais divagações funcionavam para ele como uma qualquer canção de embalar, especialmente agora, que já enroscado nos lençóis de seda começou a chover violentamente, o que lhe permitia imaginar com um profundo realismo, aqueles que morriam de sede, de sede da mesma água que lhe escorria agora pelas condutas da casa para depois ir saciar ervas daninha. Mais um suave arroto, evidenciando um estômago ainda demasiado farto de comida por que milhões de outros rastejariam, apenas para provar, e adormeceu.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Meu querido mês de Agosto

Esta história não começa em Agosto, não acaba, mas nela há quem viva,

De um Portugal abandonado à escuridão da agora bem-amada, ditadura, “escapa” um dia o Manuel, era ainda novo, bom rapaz, lia com dificuldade, e sonhava ter dinheiro para um dia construir uma boa casa na aldeia, e, o seu sonho mais secreto, ser o primeiro a ter um carro lá na aldeia. Assim, despediu-se naquela manhã chuvosa de princípio de Inverno, em que as gotas de chuva apesar de gordas e efectivas, pareciam nem molhar, de tudo o que conhecia, de tudo o que era, um abraço forte à mãe, já viúva, e um beijo, sem grande chama, que toda a aldeia observava, a Olívia, a sua ainda mais nova noiva. E levando na mala apenas umas broas e uns rissóis caseiros e 2 tabletes de chocolate, partiu rumo à fortuna anunciada.

Não sabia uma única palavra de Francês quando chegou, desenrascava-se com uma linguagem gestual que roçava o primata, e nada conseguia comprar com os 2,5 escudos que tinha no bolso, acabou por já noite dentro da sua primeira noite em Paris, depois de 10 noites a dormir na rua ou em palheiros, conseguir uma pensão para passar a noite, tremia de frio, um frio que nunca conhecera em 21 anos de vida, não sentia as pontas dos dedos nus e arroxeados, mas ia ficar na pensão numa espécie de fiado. Disse orgulhosamente a sua primeira palavra em Françês, um Merci numa voz grossa e desajeitada em que o i era imperceptível, e subiu as escadas, gastas ora pelo uso, ora pela solidão, de par em par. O quarto era fraco, minúsculo e pobre, custa-me até acreditar que houvesse quartos tão tristes em Paris, as baratas pequenas faziam uma fila ordenada enquanto percorriam o chão, o colchão não tinha tão pouco dois dedos de espessura, mas Manuel sentia-se uma divindade, nunca tinha dormido num colchão, e estava agora a descobrir, na casa de banho do corredor da pensão, que das torneiras também sai água quente, enquanto tomava um demorado banho e uma contínua camada de escuro ia trocando o seu corpo franzino pelo branco amarelado da cabine, dir-se-ia, se agora fosse, que o pobre do rapaz tinha perdido dois tons de bronzeado.

Para trás, deixara a sua mãe, Dona Alberta, na mesma vida de sempre, entregue ao trabalho nas terras, a cuidar das galinhas e das cabras, ao rádio lá de casa, à televisão pequena do café, aos serões de maldizer, às rezas decoradas e à costura ocasional, à nostalgia envenenada pela inveja, e ao desejo. Às saudades que tinha de uma companhia que fosse do sangue dela, que resultasse do seu suor, respondia com a secreta certeza de que o filho ia voltar, e ia voltar inteiro, ao contrário dos filhos de duas vizinhas e amigas de serão, uma tinha perdido o filho na guerra, a outra tinha recebido de volta o filho estropiado.

Num final de tarde, em que, para esquecer as mãos cheias de ferida, algumas quase em sangue, e a pele que ardia de queimada, depois de um dia de trabalho ainda mais terrível que o de ontem, bebia uma cerveja numa taberna lá dos subúrbios, em que as cadeiras cheiravam a velho quando não a podre, o chão, fora em tempos à muito idos, claro, quase branco, e as telhas de zinco preto, algumas já rachadas e quase todas com as pontas partidas, absorviam e impunham a quem debaixo delas se sentava ainda mais calor do que aquele que se fazia sentir naquele dia estranhamente quente de principio de verão em Paris.

Quando uma francesa mais ou menos da sua idade, talvez 1 ou 2 anos mais nova, entrou com ar pedante e mais que pedante, poderoso, naquela taberna onde só estavam serventes de pedreiro e alguns os trabalhadores da vidreira, e pedindo também ela uma cerveja, fora sentar-se á beira do Manuel, que diga-se, era senão o mais bem-parecido, pelo menos o mais jovem dos que lá se encontravam e o único que ainda não tinha sequer um pronuncio daquela desprezível barriga que caracteriza tantos homens, e que qualquer mulher, ou pelo menos qualquer jovem mulher, define como nojenta. Trocaram algumas palavras, apesar do Francês de Manuel ser ainda demasiado arcaico para qualquer tentativa digna de articular 3 palavras seguidas, o momentâneo desejo de ambos por carne, a beleza, não estonteante ou especialmente inata, mas provocadora dela, bem como a motivação secreta dela para ter entrado num final de tarde daqueles numa taberna daquelas, rapidamente tornaram as palavras faladas dispensáveis, na verdade ainda só tinham falado o suficiente para descobrir que nenhum dos dois era mudo, o que poderia dar jeito daqui a pouco, quando subiram até ao minúsculo quarto de Manuel, que continuava ainda a morar naquela triste pensão.

Tiveram quase 2 horas ora de olhares e anseios, ora de preliminares, ora de sexo de cadência intermitente, incluindo sexo oral, algo que diga-se ele nem sabia que existia, nunca experimentaria nos futuros 45 anos de casamento com Olívia, mas tinha gostado bastante. No final, ambos nus e suados, estavam abraçados, no chão sujo e quente, ignorando as baratas que lhes passavam por cima dos dedos dos pés, que a cama teria sido demasiado pequena para tudo aquilo, quando ela, entrelaçando os seus dedos finos, nos dedos fortes e meio calejados, meio em ferida dele, lhe levantou o braço que a aninhava a ele e se levantou, sem palavras, sem esforço, se vestiu. E quando, depois de um último esgar se preparava para sair do quarto, ele, ainda nu e sem se levantar, perguntou-lhe o nome, ela sorrindo, e pela primeira vez corando um pouco disse, sem se virar completamente para ele que se chamava Sophie, e avançou determinada, contudo mantendo o ar pedante, para a porta, mas não sei antes ouvir um convicto “Mápélle Manuél”.

No dia seguinte, e também no a seguir a esse, Manuel pensou em de alguma forma procurá-la, repetir tudo aquilo, talvez até quem sabe romper o namoro com a Olívia, mas depois caía em si e ocorria-lhe que na aldeia nunca seria olhado da mesma forma se o fizesse, que era para ganhar dinheiro, tanto quanto conseguisse que ele lá estava naquela cidade maluca, e que além disso a Olívia chegava já para a semana, e ainda por cima a Sophie bebia cerveja, o que claro iria deixar de beber se estivesse com ele, mas já por si era indecente, e também lhe tinha desagradado que ela já não fosse virgem quando subiu com ele até ao quarto, pelo que acabou por desistir de pensar em procurá-la, apesar do desejo, de uma esperança que nem a ele próprio conseguia explicar, e de ela ter bem menos pelos que a Olívia.

Chegaram à aldeia no carro de frente comprida e conforto inexistente, branco por fora, e com uma napa preta muito fina que lutava para imitar o cabedal, que o Manuel tinha estreado já o Verão passado lá na aldeia, era a 4 vez em outros tantos anos que lá voltavam, e desta vez eram 3 que voltavam, ele, Olívia, e a sua pequena filha, Stephanie, a dona Alberta ostentava uma enorme felicidade, e não parava de sorrir por estes dias, embora tão imutável sorriso se devesse também à dentadura nova que Manuel lhe tinha oferecido, e que todas as vizinhas teriam agora que contemplar e invejar, e se possível comentarem até um pouco tal assunto umas com as outras.

Os dias da dona Alberta passavam agora numa azáfama, entre contemplar e agarrar a neta, fazer as refeições para todos, contar, nunca apenas uma vez, todas as novidades da aldeia, nunca apenas as objectivamente verdadeiras, tratar das matanças na capoeira, fazer 2 ou 3 passeios com o filho, a neta e a nora, até à cidade, outras tantas idas à praia, para a qual, a custo e depois de muita insistência do Manuel lá comprou um fato-de-banho, embora claro, algo XXL, que lhe cobria as pernas até à altura dos joelhos, enquanto o da Olívia ficava dois ou 3 dedos acima da altura dos joelhos ( ambos eram bem maiores que o vestido de Sophie naquele final de tarde, tal lembrança fê-lo primeiro sentir ardor, e depois, esboçar um sorriso vazio) , algo que, claro está, lá para meados de Setembro já seria trazido a tema de conversa com as vizinhas, e a ida e preparação da grande festa da Aldeia, na qual já não participava à 7 anos, pois só agora acabava o tempo de luto “digno” de uma esposa para com o seu marido.

No final do mês, despediu-se com abraços fortes, muitos beijos, e a sincera convicção de que tinha sido o melhor Agosto em muitos anos (apesar de notar que o filho estava a ficar meio marreco, algo que claro nunca comentaria com ninguém), quando ajudou a fechar o porta bagagens do carro, completamente cheio de coisas da aldeia, cheio da própria aldeia, e instantes depois começou a ouvir o motor a trabalhar, e o carro se começou a afastar lentamente, mas sem sinais de ir engatar a marcha atrás, deixando apenas pó a quem ficava para trás, ficou quase instantaneamente com os olhos em lágrimas, algumas lutando mesmo para correr rosto abaixo e se perderem nas já tantas e profundas rugas, mas fez um esforço monumental para as suster a todas, passar dissimuladamente a mão pelos olhos e acenar com o sorriso novo espetado no rosto para o carro que partia e que ela não tinha o direito de travar, não era mais a vida dela, essa ia entrar em estado vegetativo mais 11 meses em que tudo o que faria seria para que voltasse a nada faltar no próximo Agosto e na próxima bagageira do carro, afinal alguém tem que alimentar as galinhas e as cabras, e as couves não nascem do nada e as camisolas de malha não se fazem sozinhas, além de que aquela vizinha, sim essa mesmo, a mãe do estropiado, não parava de a mirar de longe, e não tinha o direito de a ver chorar.

Na verdade a vida de todos entrava em estado vegetativo durante 11 meses, as feridas nas mãos de Manuel só saravam em Agosto, e os calos nos dedos, e dores nos ombros e costas, essas ficavam sempre, Olívia, bem como Manuel trabalhava 6 dias por semana, trabalhava numa fábrica de latas de conserva, e fazia ora um turno e meio, ora 2 turnos de cada vez para conseguir ganhar mais uns francos, e mesmo assim chegava a casa quase sempre antes de Manuel, a tempo de ainda cozinhar para eles, sempre com as carnes mais baratas e, enquanto as houvesse, as batatas da aldeia, ao domingo não trabalhavam, mas raramente saíam de casa, tudo implicava gastar dinheiro, gastar francos, francos que eles tinham, tinham bastantes até, mas que queriam converter em escudos, para quando voltassem de vez para a aldeia de ambos, passavam meses a fio, fechados entre os trabalhos estupidificantes e aquele prédio velho, frio e quase podre, dos subúrbios de Paris, chegaram a passar anos, aliás a Olívia apenas passados 3 anos em Paris é que viu a Torre-Eiffel, e ainda agora não começara a fazer o buço, a vida de todos, menos a de Stephanie,

- Je t’aime,

- Pour toujours?,

- Non, je ne vivrai pas éternellement.

Stephanie tinha 18 anos, e era o 18 mês de Agosto em que regressava à aldeia, tinha-se despedido de Claude, anteotem ao final da tarde, e a verdade é que já queria voltar para junto dele, não por as saudades, ao fim de 1 dia e meio terem crescido tanto assim, mas porque este mês na aldeia adivinhava-se ainda mais insuportável que o do Verão passado, chegara esta manhã e já tinha ouvido 3 velhas coscuvilheiras, hipócritas e quase sanguinárias, uma das quais era a mãe do estropiado da guerra colonial a comentarem a pouca vergonha que eram a saia extremamente curta que usava hoje, o que, segundo as palavras das velhas “é para mostrar aos homens que os quer ser fornicada por todos este verão, e mais houvesse, mais marchavam”, ou julgavam que ela era surda como elas, ou queriam mesmo que ouvisse, para a tentarem domesticar, e enquanto isso dois jovens da aldeia, um dos quais também emigrante, olhavam-lhe para as pernas e para o rabo, ostentando uma pose e caretas faciais dignas dos melhores primatas, a eles não os ouvia, também não precisava, percebia através de infelizes e fugazes olhares trocados com aqueles marsupiais que se deleitavam a imaginar-se a agarrar-lhe as pernas com força enquanto a tratavam como um cão trata uma cadela, olhares que só podiam agradar quem não sabia merecer bem melhor. E diga-se que, nem as velhas, nem aqueles dois gorilas, sabiam, nem iam nunca saber, que aquela saia constava entre as mais compridas que tinha, e mais que isso, o tormento que foi para convencer os pais a usar roupas daquelas, valendo-lhe apenas o facto de que em Paris quase todas as jovens se vestiam assim, o que tocava principalmente na sensibilidade do Manuel, já bastava ele, e a Olívia serem todos os anos e durante 11 meses em cada ano, serem olhados como diferentes, e até mesmo como inferiores, e mais que isso sentirem-se menores e viverem numa pequena, isolada e desprezada “bolha” de um mundo que não pára, bastavam eles, passara toda a vida adulta por constantes provações, sacrifícios e humilhações, apenas disfarçadas em Agosto, e apenas pedia uma coisa em troca, a felicidade de Sthephanie.

Apesar de ainda nova, ela sabia-o bem, tão bem que por vezes, nos belos e primaveris finais de tarde em Paris, com os pés dentro da água fria, mas mesmo assim apetecível do Senna e os olhos postos no Mundo, ficava com os olhos humedecidos por lágrimas ao pensar no sacrifício que duas gerações perdidas e trágicas tinham feito por ela, a sua avó (que em toda a sua vida nunca saíra por uma vez que fosse do distrito), passava todo o ano a preparar Agosto, a desejar Agosto, a recordar Agostos passados, para evitar recordar as saudades do que nunca tivera, o marido, que para sua desgraça e vergonha morrera há já tantos anos, quando completamente bêbado caíra a um poço, batia-lhe sempre que bebia demais e tresandava a álcool, ou seja, todos os dias, uma vez, pouco depois do nascimento de Manuel, dera-lhe socos tão estúpidos e violentos na barriga que ela nunca mais pudera ter filhos de novo, e claro que ele culpava-a a ela por não poder ter mais filhos e dava-lhe ainda mais porrada, até mesmo na cara de feições outrora belas da agora Dona Alberta, e toda a aldeia sabia, nomeadamente as agora colegas de maldizer e amigas de serão, mas ninguém fazia nada, pelo que uma potencialmente bela, viajada, culta e até amada mulher, para sempre viveu encarcerada no corpo da Dona Alberta, tendo até acabado, não logo, mas agora, depois de tanto tempo de cárcere, por perder o desejo de ser amada por um homem, o desejo de sexo, pode até dizer-se que tudo isso apodreceu nela, claro que acabou por tornar-se numa coscuvilheira amargurada, invejosa e sempre triste, mas que mais pode uma mulher fazer quando a proíbem de viver, senão de alguma forma, sobreviver.

Os seus pais tinham-se tornado escravos em plena segunda metade do século XX, a diferença em relação aos séculos passados, é que agora os escravos tinham férias, chamavam-se Agosto, Manuel tornava-se cada dia mais marreco por causa do trabalho, quase na mesma proporção que Olívia se tornava mais gorda, as suas mãos outrora sempre em ferida estavam agora completamente calejadas e até deformadas, à já 3 anos que não entravam no centro de Paris, nunca tinham feito um passeio de barco pelo Senna ou comido um croissant com chocolate quente nas divinais confeitarias Parisienses, aliás a última vez que estiveram no centro de Paris foi para verem a filha actuar numa peça da escola, não faziam sexo à 8 anos, o descuido de Olívia com a aparência era catastrófico, pelo que pelo menos nisso o excesso de trabalho e cansaço de Manuel servia como um bom escape, aliás ela não tinha sexo à 8 anos, Manuel tinha ido à não muitos anos a uma prostituta em Paris, e assim, apesar de ter que pagar um extra, voltou finalmente a ter sexo oral, mas nunca mais lá voltou, porque tinha mesmo que poupar, os estudos de Stephanie estavam cada vez mais caros, e também tinham que poupar para um dia conseguirem acabar de construir a quase mansão que já tinham começado a construir lá na aldeia. E, entristeci-a mais ainda, porque isso fora uma atitude dela, todos os estratagemas que arranjara para que os seus pais não voltassem a assistir a uma peça lá na escola, depois da vergonha da última vez, nem conhecessem nunca os pais dos seus amigos da escola em que estivera, que este ano era o seu primeiro ano na faculdade. Nunca lhes contaria claro, para o bem deles, algo que ela tinha feito para tratar do bem dela.

Ela que ao final de 2 gerações de tragédias, aproveitava a fantástica capacidade de amar, passeara de mão dada ora pelas mais belas, ora pelas mais estreitas, ora por ambas ao mesmo tempo ruas de Paris, fizera amor em plenas águas do Senna depois de uma noite de Verão passada no único recanto de Paris de onde à noite se conseguem ver as estrelas, apreciar a melhor arte que se fizera, existia, e fazia em Paris, se esconder dos seguranças, junto com Claude, num dos centenas de quartos mágicos de Versalhes, de receber cartas de amor, e das escrever também, de estudar numa das melhores faculdades, frequentar os melhores clubes e tertúlias, e mesmo assim, ou e apenas assim amar loucamente. Por isso em Agosto fazia um esforço para aguentar a distância da vida, e um enorme esforço para que os seus pais e a avó não notassem que desprezava quase tudo naquela aldeia, assim, mesmo sem uma dentadura nova, parecia a avó, sempre de sorriso colado no rosto, devia-lhes isso, devia-lhes muito mais, nunca lhes pagaria tais sacrifícios, e por vezes temia isso, temia que um dia lhe pedissem mais do que ela queria, ou podia alguma vez dar.

Não imaginara nunca ela, que Manuel passaria de bom grado mais 10 vezes por toda uma vida de provações e humilhações, só para, como agora, sem ela saber, a contemplar, superior a ele, superior a todos os outros na aldeia.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Cara ou Coroa

Imagina que a tua vida depende desta escolha absurda. As pessoas mais ou menos interessantes, mas nunca com a mesma constante razão e presença de espírito que tu possuis, que tu já conheces e ainda vais conhecer, e todas as outras, essas sim verdadeiramente interessantes e que te compreenderiam em toda a tua magnitude, que ficaram por conhecer. O emprego medíocre, que arranjaste, quase que a lembrar o trabalho de Sísifo , e as 20 oportunidades que perdeste de ser rico. Os que escolheste amar, porque o tempo não pára e já estava a ficar tarde, escapando-te aquela tua outra tal metade, que Zeus um dia separou com um raio.
Assim como as tuas formas cada vez mais arredondadas, não, isso não, desculpa, isso é culpa dos maus genes, que tu até não comes quase nada, e às terças e quintas-feiras vais passear o cão, para o bicho não ficar entrevado. Ou mesmo o acidente que tiveste, porque o outro empecilho, que por acaso tinha acabado de ver um documentário do National Geografic sobre salamandras, e o seu importante papel no ecossistema global, resolve travar a fundo quando uma se lhe atravessa no caminho, enquanto tu apenas ias sem distância de segurança, e em excesso de velocidade, porque, já estavas atrasado para o tal emprego medíocre, quando te lembraste que ainda não tinhas ido ver à internet se o Glorioso tinha ganho aquele amigável com uma equipa Chinesa, do qual só tinhas visto metade porque o fuso horário dos olhos em bico é meio manhoso, além de que aquela estrada era perfeitamente segura para andar rápido, excepto com bestas como aquelas por perto. A tragédia que daí veio, estavas sem sinto, foste projectado, bateste com a cabeça, e o teu olho esquerdo foi a única coisa que alguma vez voltaste a mexer. Ou afinal não, tinhas posto o sinto quando te cruzaste com um carro da polícia 2 minutos antes, apenas te arranhaste no joelho, tinhas seguro contra todos os riscos e até já estavas a pensar trocar de carro que aquele fazia um barulho esquisito no motor, o tipo da Salamandra já tinha uma certa idade, reconheceu alguma culpa, mas como, incompreensivelmente, para a implacável da Seguradora foste tu o culpado, e ias pagar o seguro mais caro nos próximos 10 anos, o velho teve pena de ti, alguns remorsos até, pois reparou depois que aquela salamandra era da subespécie Gallaica, e o documentário dizia que as Crespoi é que são importantes para o ecossistema, convidou-te para uma churrascada em casa dele. Tu foste, conheceste a filha dele, estava a ficar já tarde para amares alguém, casaram-se, deixaste descendência, ups, ela era médica, aquela médica para quem tu pela primeira vez abriste o olho que conseguias piscar depois daquele terrível e estúpido acidente em que não te cruzaste com nenhum carro de polícia pelo caminho, a escolha é tua, a moeda já girou no ar, está encarcerada numa qualquer mão, à espera, cara ou coroa?

segunda-feira, 25 de julho de 2011

SBSR

A noite estava agradável, as previsões diziam que ia estar ventosa e fria, para uma noite de Verão, mas as dezenas de milhares de pessoas que preenchiam o recinto, o álcool que já me acompanhava o sangue apesar do preço absurdo da cerveja, e a vibração dos concertos que contagiava, faziam com que o vento ou frio ali não se impusessem, e o resquício de frio que perdurava na pele, consequência dos duches de água fria do festival, era-me até agradável. O recinto estava fortemente iluminado, a luz que enganava a noite era tanta que permitia ver o rasto branco deixado pelos aviões comerciais que iam passando rente a uma lua que apesar de cheia e orgulhosa não se conseguia impor.
Era a primeira noite, mas a quantidade de pó levantada pelo vento, e pelo andar, saltar e vibrar de toda aquela gente, fazia com que a minha roupa, a minha pele, os meus olhos, e mesmo o meu muco nasal, já estivessem completamente embrenhados desse mesmo pó, contudo, como o “mal” era de todos, e os decibéis camuflavam tudo, a sensação de sujidade tornava-se residual. A quantidade de charros que me ladeavam era também ela avassaladora, bastava inspirar com alguma força para se sentir o fumo que vinha das pontas incandescentes e que servia também ele de exército contra a suja inércia do pó, aliado da When the Sun Goes Down que agora se fazia ouvir e de um quase mágico entusiasmo e dos corpos, de todos os corpos, mas mais notoriamente dos bonitos, que com ela vibravam. Nesta altura um tipo perto de onde eu estava caiu desmaiado, passou de toda a luz, todo o som, toda a multidão e pó que um ser humano pode imaginar enquanto sonha, para o escuro e silêncio, ou pelo menos, para o chão. Nada mudou na multidão, não podia mudar, apenas um corpo se baixou logo depois de ele tocar o chão, tentava não ser pisado pela vibração, dava-lhe estaladas na cara e gritava-lhe qualquer coisa ao ouvido, talvez soubesse o que estava a fazer, pouco depois ambos surgiram de novo, ele estava de novo consciente naquele hino aos sentidos, ou pelo menos tinha largado o chão, um breve instante, eram ambos de novo multidão.

sábado, 9 de julho de 2011

A troca

Acordei, e ao voltar o pescoço fixei o olhar na mulher ao meu lado, a pele, ainda carente de uma vitalidade adormecida, apresentava-se estranhamente pálida, contrastando com o vermelho vivo dos lençóis e com o resto de batom que ainda permanecia nos lábios, e lutava por se manter à tona. A persiana da janela estava entreaberta, e assim, os primeiros raios de Sol, que ela dividia sem travar, iluminavam-nos os corpos nus em milhares de pequenos rectângulos de luz. Sabia que estava perante a maior beleza do mundo, e não sentia nada, não desejava nada nem tão pouco pensava nisso, e com tanto nada já me estava a atrasar. Levantei-me maquinalmente, tendo especial cuidado para pouco fazer balouçar o colchão ao sair, e mesmo os lençóis vermelhos pouco se sentiram, não queria que acordasse, não tinha nada de lucrativo para lhe dizer.
No banho, a água quente que vinha de cima e me massajava monocordicamente as costas permitia-me continuar sem sentir nada, e talvez a culpe em excesso, mas impedia-me mesmo de pensar no absurdo daquela manhã, fechei os olhos, e apenas vi folhas de papel, tabelas de Excel, e fotos, todo o género de fotos, todo o género, desde que fossem de papel. Ai sim, uma primeira pontada de desejo matinal surgiu, folhas preenchidas com belos relatórios , alguns em Ariel 12, outros em Times New Roman, queria analisá-los a todos, louvá-los depois, e as tabelas, milhares de números, combinações de números, queria tocar naqueles números, jantar fora com eles e depois fazer serão, senão à lua cheia, pelo menos iluminados por uma boa lâmpada de 50 watts. E juntando algumas fotos, que mais pode um homem sonhar, até com elas posso andar de mão dada, basta levar tudo dentro de uma pasta.
Fechei a torneira, e ínfimo intervalo de tempo que passou até me começar a secar, senti as gotículas de água que não me tinham largado, e que já estavam apenas mornas, a percorrer-me o corpo, como se um labirinto onde se queriam perder se tratasse, fazendo-me cócegas, ainda bem que acabou depressa. Vesti-me, perfumei-me, olhei-me ao espelho, agradei-lhe, e ajeitei um pouco o nó apertado da gravata.
Olhei para o relógio, e como, se tudo corresse mal, ia demorar 45 minutos a chegar até chegar ao trabalho (que a partir de agora, e nestes últimos 2 derradeiros parágrafos será tratado por Ele) e já só faltavam 50 minutos para o Acontecimento, já não tinha tempo para tomar o pequeno-almoço, comia qualquer coisa depois, e por isso ainda me sobravam agora, que o tempo não espera, 4 minutos, passei pelo quarto mais uma vez, ela continuava a dormir profundamente, mordiscando inconscientemente o lábio, respirava como se fosse suposto eu entender, não sei se foi só hoje, se vou voltar a amá-la amanhã, agora a minha alma é para Ele, transtorna-me agora, mas sei que nunca vou ter coragem de lhe dizer, nunca vou ter coragem de dizer a ninguém.
Estou junto dela, faltam 2 minutos para ter que ir, nem uma ponta de desejo, sinto que temos um contrato de trabalho a unir-nos, quero contar-lhe, dizer-lhe que não a amo, que me fartei do belo, da vida, e dos iguais a mim, ela acorda, os olhos esverdeados dela ainda com as pálpebras hesitantes poisam-se nos meus, aproximo-me mais uns centímetros e beijo-a, olho para o relógio de braçadeira de prata, está na hora de ir ter com Ele, ela finge sorrir, eu retribuo, não há palavras, viro costas, e saio de mão dada com a pasta, feliz, vou ter com o meu grande amor e por isso não me penso.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Amar na Idade Média

De todos os períodos da história, a idade média é provavelmente o mais injustiçado e desprezado, “dez séculos de trevas”, é como com desprezo lhe chamam. Mas a idade média somos nós por moldar, nós em uma passada hipótese de existir, uma hipótese antes de a luz ter iluminado o mundo, antes de a ciência nos seduzir, antes de se querer abolir o trágico. Tanto se fala da morte e da crueldade no tempo da idade média, do infortúnio dos que nela se conta que existiram, e tão pouco dos que nela se esquece que amaram.

Imagine-se por uma vez, um tempo em que se fantasiava com a morte, não com a vida, a vida não iludia, vivia-se, e vivia-se nos confins do mundo, em que tudo acabava no que os olhos viam, as cidades, as aldeias, as casas, as pessoas, a dor, a tragédia e o amor, eram o que eram, não o que os moldavam para ser. Nada se questionava, como se tudo fosse o que realmente fosse, as tragédias sucediam, como se desde sempre e para sempre, fosse sangue que respirássemos, e fosse apenas para amar que aqui estivéssemos. Ou para morrer a tentar, que o amor era eterno, e a morte apenas dor. E assim, quem amou na mais profunda tragédia e escuridão, iluminou-se sem que nunca lhe mostrassem qualquer luz, o mundo permanecia escuro, e eles, iluminados, foram-se, escapando à história, uma história que ilumina o mundo, mostra e deslumbra, mata, e depois narra.

domingo, 3 de julho de 2011

Eterna

Eterna,
Bela,
Soberba,
Maldito de quem te tira o véu,

Enganas,
Controlas,
Vences,
E assim amas,

E mesmo quando perdes,
Não perdes,
Ninguém ganha

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Ensaio sobre o amor

As longas cortinas que tapavam o palco estavam entreabertas, eram de tom ora azul ora quase preto, e por traz delas, dois corpos de sorriso no rosto, e olhar apaixonado, ambos com um punhal cravado no mesmo exacto local do ventre que lhes rasgava a roupa, a vida e a lógica, jaziam inertes, era o corpo dele e o dela. Há frente do imponente palco onde os seus corpos eram personagens principais, apenas cadeiras, belas, confortáveis, e até ortopédicas, mas vazias, tantas que do palco não se via onde acabavam, quanto ao resto do teatro, a talha de ouro bem trabalhada disfarçava, o que os olhos nunca puderam ver.
Ele questionava quase tudo, questionava a vida, para que estava ele aqui afinal de contas, se os outros, se tudo o resto era mesmo real, ou apenas informação fantasiosa e manipulada por algo superior que ele desconhecia. O próprio belo ele questionava, tantas coisas tão belas, tudo é belo à sua maneira equacionava ele, seja o bater de asas ordenado dos pássaros que passam em mágica coordenação, seja o voo solitário de um só pássaro que parece lá do alto saber todos os segredos que realmente importam. Seja um rosto com um sorriso jovem, aberto e perfeita dentição, seja um sorriso de velho, que até já deveria estar gasto, e mesmo assim permanece aberto, com muitos dentes em falta e rugas entranhadas, mas belo. Seja um ar ora miserável e profundamente infeliz, ora enigmático e pensativo, e na mesma profundamente infeliz. E por mais que se tentasse e aprofundasse estas discussões com ele, não havia forma de lhe mudar tal perspectiva, porque ele até no que de mais díspar existe do belo, a fealdade, até nisso ele via beleza. Via-a nos feios, gordos, incapacitados, velhos acabados e restantes miseráveis, que mesmo assim sorriam, ou os casais, que bonitos ou feios, inteligentes ou não, após algum tempo de convivência em comum, vêm que o outro é tantas vezes ridículo, cheira mal, tem cólicas, fica doente, espirra e tem comichão de forma que nada tem de eloquente ou cativante, e mesmo assim continuam juntos e dizem querer continuar, e é o conjunto que é belo, não cada uma das fracções. Assim como belas não são as entranhas do pássaro, mas o pássaro inteiro que voa sobre nós, e aliás, acabei por vos mentir à pouco, ele não questionava o belo em si, mas sim o propósito do belo.
Apenas não questionava a matemática, achava-a supérflua e ao mesmo tempo complexa, e por isso desnecessária, ou melhor, não se metia com ela porque acreditava não a poder vencer, mas não se preocupava muito com isso. Que é a matemática senão a resposta objectiva, complexa e superficial, para tudo aquilo que é subjectivo, simples e profundo, inquiria ele, só não lhe retirava o “estatuto” de bela, porque equiparava-a às estrelas numa noite limpa de tudo, até de lua, brilhantes, tão brilhantes, que pareciam chamar por quem as realmente percebesse, ou até mesmo quisesse, apenas esse “alguém” nunca seria ele, seria ela.
Ela era aquilo a que vulgarmente, de forma simplista, e porque não dizê-lo, injusta, se chama de mulher objectiva e da ciência. Adorava a matemática e a física, não questionava tudo, mas arranjava explicações lógicas e normalmente demonstradas por cálculos, para tudo o que se propunha, custava-lhe até imaginar diga-se, que pudesse ser de outra forma. Os números, a matéria, os átomos, as equações e inequações, as cisões e as fusões, pareciam ser a única forma de tudo ter algum sentido, valor, e credibilidade. Claro que também sonhava, mas até aí incluía a matemática e a matéria como co-factores essenciais, olhava para as estrelas em certas noites e imaginava-se a viajar até lá, calculava mentalmente o tempo que demoraria para dezenas de distâncias e velocidades diferentes, e meticulosamente pensava como poderia ocupar o tempo de forma conveniente, num espaço restrito, artificial e sem gravidade, ou como seria se viajasse à velocidade da luz, quão mais devagar passaria proporcionalmente o tempo a tal velocidade, o que aconteceria com tudo o que importa, a matéria. Olhava para as flores e o que primeiro lhe ocorria era a sequência de fibonacci, espreitava os beija-flor e ia para casa a pensar que combinação de potencialidades permitia que as suas asas batessem daquela forma avassaladora, ou sobre a real aleatoriedade do caótico movimento dos electrões, tudo o que era caótico e por natureza incontrolável, assustava-a.
Ambos, da sua modesta forma, queriam sempre saber mais, aprofundar mais, escrever e calcular mais, perceber ou definir o propósito de tudo, e assim, como de tantas outras formas, os outros tentam fazer, conquistar o mundo, até que se conheceram.

Todos se moviam por qualquer coisa, fuga às responsabilidades, vontade de conquistar corpos alheios, imperativo de mal dizer, contrariados e por isso arrastando os pés e desprezando a alma, ou pelo álcool e afins tragédias. Pouco espaço sobrava no recinto apertado e decorado com faixas, flores de papel, luzes intermitentes e contínuas de cores diversas. O calor era intenso, mesmo à noite, e por isso a cada passo de dança ou simples andar, os corpos suavam, e a roupa, por norma já pouca, colava-se.

-Hey, não fujas com o chapéu.
-Se não fugir posso ficar com ele?
-Não, fica-me melhor a mim.
-Depende da perspectiva, mas fico com ele 5 minutos e pago-te um copo pode ser?
-Claro que não, não me vais pagar um copo, isso é machismo que eu dispenso, e tentativa de me impressionar descarada, e já agora, não te afastes sem me devolver o chapéu, mais de 10 passos é fugir.
- Não, não é machismo, machismo seria, e mesmo assim poderia ser outra coisa, que a loucura e insensatez são culpadas de quase tudo, querer pagar-te um copo sem receber nada, que não fosse a tua companhia, em troca. Mas receberia o chapéu por 5 minutos, e sinceramente não sei onde poderia aqui alugar um chapéu destes por menos que um copo. Quanto a te querer impressionar ou agradar, não me parece que tirar um chapéu e propor um copo em troca fosse a melhor, ou tão pouco uma mediana forma, de agradar a alguém, se realmente te quisesse impressionar teria apenas tocado no teu chapéu quando à pouco ainda estavas de costas e distraída, e quando sentisses o toque e enfim te virasses, diria impressionado que já que te agradava andar com um chapéu padrão tigresa numa noite destas, devias pelo menos colocá-lo um pouco mais para cima na cabeça, para que não te tapasse, a ti, a visão de um mundo contagiado por sentidos, e a quem te vê, o verde mais belo, mais forte, mais decidido, que eu alguma vez vi num olhar. Depois, quando estivesses, talvez surpreendida, talvez quase assustada pela surpresa, ou talvez apenas a decidir que expressão tentar aparentar para esconder o que ainda não era altura para sequer pensar, dir-te-ia para olhares para o céu, para a lua cheia que brilha alta hoje, e perguntar-te-ia se sabias que numa noite destas as luzes da festa e da cidade escondem um céu quase azul, mesmo à noite, culpa da própria lua, rezando baixinho para que dissesses que não. Não por desejar que não o soubesses realmente, mas apenas porque isso facilitaria o pretexto para te convidar para por um pedaço de tempo sairmos da festa e irmos os dois juntos até à areia da praia agora finalmente deserta do outro lado da ponte, ver o azul de um luar assim. Quanto aos 10 passos não te preocupes, apenas darei passos na tua direcção, pelo menos enquanto não te devolver o chapéu.
- E porque não o fizeste, porque não disseste nada disso?
- Porque realmente nunca te quis agradar, ou porque sou tímido, e um idiota.
- É suposto eu adivinhar?
- É suposto queres descobrir.

Muito encasacados, em cima de um muro já velho onde musgo e pequenas flores sem dono proliferavam, o Sol punha-se sobre o mar neste dia gelado, e mesmo assim o laranja era intenso e de certa forma e lá longe, até quente.

-Fecha os olhos, imagina que o mundo é só nosso por um instante, donos, senhores, e todos poderosos.
-Hum, para quê?
-Apenas fecha-os, confia em mim – Beijou-lhe os lábios
Passou cerca de 1 minuto
-Ainda não posso abri-los?
-Quase, quase.
Ouviu-se algo a rebentar
-Mordeu-lhe a bochecha esquerda desta vez – Um feliz ano novo,
-Mas, mas, este ano não íamos poder passar o ano juntos por causa do teu turno de daqui a pouco – Lágrimas, tantas lágrimas iam-lhe correndo pelo rosto, eram, caro leitor, se assim se podem chamar, as lágrimas mais felizes do mundo.
Pequenos flocos de neve iam caindo sobre eles, apesar de na linha do horizonte sobre o mar se ver ainda o ténue avermelhado da despedida do Sol de Inverno.
-Bem sei que ainda faltam 6 horas agora, e nunca te prometi nada de eterno, nada para sempre, nem tu a mim, bem sei também que esta data em si, para mim, nada significa, e para ti arrisco dizer que ainda menos ou igual, mas celebremos nós o ano novo antecipado de um calendário cristão, ou apenas mais uma hora, que agora passou, não podia deixar de o passar contigo hoje.
-Passou a mão pelos olhos ainda em lágrimas, lágrimas não pela surpresa em si, nem tão pouco pela data ou pretexto em si, mas sim por começar a perceber, por um convicto e mágico saber que lhe percorria as entranhas, que seria para sempre, um para sempre sem promessas ou ilusões, apenas para sempre – Sabes, já nada é como antes de te conhecer, porque antes não acreditava que isto, exactamente isto que me percorre agora, e por isso lhe chamo isto, existisse mesmo, bem sabes que nunca acreditei em almas gémeas e afins conjugações, e que não foi fácil ao inicio, éramos por dentro tão diferentes, agora somo-lo apenas por fora, e sim, esquece qualquer promessa, tudo o que não prometemos sabemos, o que prometemos, inventamos, e eu sei.
-Almas gémeas, só champagne e chocolate, foi o que trouxe para nós agora.
-Primeiro o champagne ou o chocolate?,


Chovia torrencialmente naquela tarde de fim de Outono, muitas árvores estavam já despidas no parque, e o manto de folhas algumas alaranjadas outras quase cor de sangue ia flutuando apoiado numa camada de água com a altura de 2 dedos. Eles estavam abrigados num pequeno alpendre no meio do parque, estavam apenas de roupa de interior com a pele arrepiada e molhada, e iam ouvindo a Tiro ao Álvaro num gira-discos que os acompanhava.

- Ela tremia de frio e os dentes batiam por vezes uns nos outros enquanto falava – Antes, os números quânticos e os átomos eram o que me preenchia de facto, precisava de perceber, de investigar, de demonstrar, era a única forma de mostrar que estava realmente viva, agora finalmente percebo Camões “Amor, é ter com quem nos mata lealdade”, a ânsia de vida facilmente engana quem não ama.
- O nariz dele pingava e também ele tremia de frio – Eu questionava tudo, agora tenho tudo, mesmo o amor, que sempre questionei, e ainda hoje não percebo, eu tenho, por uma vez tenho-o, e que felizardo que sou em tê-lo uma vez.
- Atchim,

Era fim de Verão e estava um calor infernal e abafado, mesmo agora, depois do Sol se ter já posto no horizonte, tinham passado ambos a tarde numa encosta abrigados do Sol pelas muitas árvores que quase se sobrepunham e abrigados do mundo por 2 horas de caminhada pela falésia, os corpos nus de tez morena repousavam agora misturados com milhares de margaridas de 21 pétalas e algumas borboletas azuis.

-O Sol desapareceu,e só agora os aviões deixam um rasto laranja no céu, daqui a pouco será noite e apenas teremos as luzes variáveis, a mesma lua e as mesmas estrelas de sempre, depois antes do Sol nascer, outros aviões irão deixar um rasto laranja no céu, e por fim nascerá o Sol, branco. Assim se passaria o dia visto daqui, e depois, com o final do dia tudo se repetiria, só a vida é transitória e efémera.
- E por isso talvez apenas o amor seja eterno, o amor, rouba a vida a troco de eternidade, o próprio céu, o próprio rasto dos aviões só ficam da cor do Sol quando o Sol se põe.

Mais ou menos neste momento fecharam-se as cortinas que mostravam os seus corpos às cadeiras vazias, alguém lá estivesse a assistir, que nunca mais os veria.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Cinema Paradiso

Era uma vês, há não muito tempo, um simples soldado que, no decorrer de uma festa da corte, na qual estavam as mais belas donzelas do reino, foi logo cair de amores pela própria filha do rei, que, diga-se, era a mais bonita de todas. Claro que, como em todas as histórias assim, ele declarou-se de imediato a ela, disse-lhe as coisas típicas que se costumam dizer nesses momentos, que estava apaixonado por ela, que ela era o ser mais belo que os seus olhos jamais viram, e que o olhar dela, o simples olhar de tão bonito e profundo lhe causava arrepios quando se poisava nele (bem, se o soldado pensava e sentia mesmo tudo isto na altura em que o disse, isso será analisado daqui a pouco).

A princesa, do alto da sua sincera beleza e presumida importância, disse-lhe que se ele gostava mesmo dela, deveria passar as próximas 100 noites na rua, perto do castelo onde ela vivia, e num local de onde ela o pudesse ver sempre da janela de seu quarto, para saber se ele cumpria realmente a longa espera. E que se ele cumprisse os 100 dias de espera, então aí ela seria sua para sempre. O soldado claro, ficou em êxtase com a possibilidade de assim poder conquistar o coração da sua amada princesa e começou nessa mesma noite a longa espera sentando-se num pequeno banco que trouxera de casa.

Claro que a primeira coisa que ele pensou, logo nessa primeira noite, logo nos primeiros 5 minutos foi que a bela princesa também se sentia loucamente atraída por ele, e que nessa mesma noite iria através de um qualquer estratagema, talvez através de uma espectacular fuga pela pequena janela, pendurando-se nos lençóis que previamente atara à cama para ir descendo e depois saltar caindo directamente nos seus braços, ou simplesmente descendo as escadas e abrindo a porta, iria ter com ele e ambos se amariam loucamente nessa mesma noite. Mas, ela não veio, acendeu uma luz no quarto ainda a noite não ia muito adiantada, pareceu-lhe a ele ver o vulto dela à janela por uns instantes, vulto esse que logo desapareceu, e nada mais se passou nessa noite, nada mais tirando a forte chuva que poucas tréguas lhe deu nessa noite, e que o deixou de tal forma encharcado que ele julgou ter apanhado duas pneumonias na mesma noite, e um pássaro cagou-lhe em cima, que isto quem diz que os pássaros dormem a noite toda é porque nunca passou uma noite na rua à espera de uma princesa. O dia acabou por nascer, acaba por nascer sempre independentemente das pneumonias, e ele foi-se embora.

As noites foram passando, e tudo continuava na mesma, houve uma em que a princesa abriu mesmo a janela do quarto (não chovia nessa noite), e lhe pareceu a ele que ela olhava lá do alto, fixamente para ele por uns instantes, parecia até que gostava dele, mas passado uns instantes saiu, fechou a janela e a luz apagou-se, houve outra noite em que acendeu por duas vezes uma luz no quarto, e por duas vezes pareceu ao soldado ver o seu vulto, e outra noite ainda em que os pássaros lhe cagaram 3 vezes em cima. Há medida que as noites iam passando os sentimentos do soldado pela princesa iam-se alterando, ou, em abono de maior verdade aparecendo, de facto quando ele disse naquela primeira vez que estava apaixonado por ela e tudo o mais, era a atracção física, as hormonas, e a estupidez precoce a falar, mas a solidão das noites, a chuva, o frio, a ânsia, a luz que de vez em quando se acendia, o vulto que por vezes aparecia, a distância, que de ser fisicamente tão insignificante e pequena, se tornava insuportável por ele não a conseguir quebrar, tudo isso fazia com que de certa e muito estranha forma o soldado começasse a gostar mesmo dela, por se fazer difícil, por ser difícil, porque só é difícil quem gosta mesmo de nós, assim pensava o soldado, porque se o irresistível e a paradoxa beleza da vida fossem fáceis, haveria bem mais pessoas felizes ou iludidas pelo menos.

Chegara agora a noite 50, e normalmente a partir deste “marco” seria mais fácil de suportar a espera, pois metade já estava, agora era uma contagem decrescente até poder ter nos seus braços a princesa por quem se apaixonara no chuva, solidão e ânsia das noites longas daquele reino, talvez um dia lhe contasse isso, que foi a espera, e não o baile da corte que fez com que ele soubesse que gostava mesmo dela, talvez não. Bem mas acontece, que depois das noites de temporal, chegou o frio, um frio tão intenso que fazia com que as mãos do soldado estivessem completamente geladas, e agora ele não tinha ninguém para as aquecer, o frio era tanto que parecia até congelar a tal contagem decrescente, e a luz no quarto da princesa que há medida que as noites frias iam persistindo lhe parecia acender-se cada vez menos vezes, de vez em quando julgava ainda que era nessa noite, fosse a 91 ou a 93 que a princesa ia sair do castelo e ir ter com ele, até podia nem lhe dizer uma palavra, mas pelo menos ficaria bem perto dele por uns instantes, aquecendo-lhe as mãos, e a alma, se a houver, mas logo o tremendo frio o trazia de volta para a realidade. Quanto ao tal esquema do lençol pendurado na janela, isso convencia-se ele, é um esquema parvo e louco, e uma princesa não é parva nem louca.

A penúltima noite chegou, e com ela tudo mudou, o soldado depois de tamanha espera e maior angústia, de tanta chuva, de tanto frio, e de mais gelo ainda, percebeu, ou julgou saber, que se ela não viesse nessa penúltima noite ter com ele, mandar-lhe um pequeno bilhete pela janela, ou simplesmente pendurar-se no lençol, e cair-lhe nos braços, seria porque a espera de 5 minutos ou 100 noites, teria sido em vão, porque nunca fora realmente correspondido, nem nos primeiros 5 minutos, nem durante 5 minutos das 99 noites que esperou, e nessa penúltima noite ela até acabou por acender duas vezes uma luz no quarto, uma das vezes ele até viu o vulto dela bem junto do vidro da janela, mas depois logo depois a luz se apagou, essa noite passou e o soldado, reunindo as forças e orgulho que lhe restavam, pegou no banco onde tinha esperado 99 noites, e desapareceu com o nascer do dia e esconder da noite, e assim, com uma forte pneumonia mas sem uma bronquite crónica deixou o reino da princesa para nunca mais voltar.

O que será que teria acontecido se o soldado tivesse esperado aquela última noite, ele não sabe, a princesa talvez, mas as pneumonias curam-se.