segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Festa Brava, o Aficionado, o Cavaleiro e o Touro



O Aficionado

Sentado, de pé, ou mesmo agarrado às grades, com as marcas das grades, do ferro destas a cravarem-se-lhe nas mãos, treme descontrolado, desordenadamente, chega a apetecer-lhe tirar a camisola, mas como é civilizado normalmente não o faz. Vai praguejando, contorce-se por dentro e a sua expressão facial, o seu sorriso retorcido, ostenta deformação, delírio, tal é a raiva, tal é a sede de prazer, a eminência em que julga estar de vir a sentir prazer, de se sentir grande, poderoso, dominador.

Quando o toureiro, a pé ou a cavalo, não importa, não lhe importa a ele, entra na arena para enfrentar o touro, ele sente-se personificado no toureiro. Imagina-se no lugar dele, na carne dele, a esventrar a carne do touro, a domina-lo, humilha-lo, e, quando o público, todo o público da arena, já em êxtase insistisse um bocadinho, a matá-lo num acto de coragem louvado, mesmo invejado por todos os outros. Aí imagina-se, vê-se a ele mesmo como invencível, só de imaginar a vida do touro a esvair-se, diante dos seus olhos os olhos do touro a perderem a vida, e ele o responsável supremo por isso.

Acontece que para supremo deleite do aficionado tais imagens a percorrerem-lhe a mente são apenas o princípio de algo maior, de algo real. Assim que o primeiro ferro é cravado com força, com determinação, com garra, nas costas do touro, o deleite do aficionado cresce infinitamente. Apenas porque, o que ele imaginou torna-se real, o touro a contorcer-se de dor no preciso momento em que o ferro lhe perfura a carne e o sangue esguicha, para a seguir tentar, em vão, ripostar contra o opressor, para tentar desesperado fugir dali, sem se ter apercebido que está cercado, fechado, fodido, que são 10 mil contra um, 10 mil a desejar-lhe dor, humilhação e morte. E diga-se, torna-se realidade ainda com mais brutalidade, com mais barulho, do que ele era capaz de antes imaginar, daí a sua histeria suprema. Chega a passar-lhe pela cabeça em tais momentos invadir a arena e espancar sozinho o touro a pontapé e cuspidelas, porque afinal, em tais momentos ele vê-se a si próprio como capaz de subjugar o mundo inteiro pela sua força, isto apesar da barriga proeminente e das hemorróidas.

Contudo em certas ocasiões mais raras, mais especiais, o melhor ainda vem depois quando, à sua frente, o touro é trespassado por uma espada, fina, comprida, letal, e depois de cuspir sangue, de se sentir desnorteado a sufocar no próprio sangue, e de tentar uns últimos passos a direito, cai no chão e se contorce desesperado, humilhado, ofendido, antes de por fim morrer ao som das palmas, do êxtase, mesmo de delírio. Nessas raras ocasiões o aficionado sente uma alegria tal, que chega a sentir-se a sair de si, lágrimas de emoção aparecem-lhe nos olhos entre gritos que bem podiam ser de urso e vivas ao toureiro, que afinal de contas, agora que pensava mais a sério nisso, com 2 ou 3 horas de treino bem podia ser ele.

O Cavaleiro

Claro que o Cavaleiro sente medo antes de entrar na arena, medo de falhar, medo até de ser colhido pelo brutamontes cruel que é o touro. Pelo que durante certas fracções de segundo chega mesmo a ponderar desistir, mas depois esbofeteia-se, mentalmente claro, a ele próprio, pergunta a si mesmo se é um homem ou é um rato, também mentalmente, claro, mas mesmo assim de forma cortês. Com base naquilo que considera serem a sua honra e coragem infinitas, chega a sentir um certa vergonha, que claro nunca confidencia a ninguém, por essa sua hesitação momentânea, e lá entra com ar pedante, orgulhoso, mesmo pré triunfal, na arena, contudo, pelo sim pelo não, as calças são castanhas.

Uma vez na arena há que lhe dar o devido mérito, ele é o único que ali está por vontade, para o touro e para o seu amado cavalo, comida, vacas/ éguas q.b. e descanso, estaria ok.

Enquanto investe em direcção ao touro um nervoso miudinho que chega mesmo a concretizar-se em calafrios, acompanha-o, trata-se da eminência da glória, ou da chacota. Sabe que não pode falhar, sobretudo, e é isso que lhe chega a causar os calafrios porque seria para ele insuportável a chacota, ou mesmo apenas a ausência de aplausos que viria das bancadas, mas o que ainda resta nele de racional, talvez de humano, diz-lhe que pode falhar, e isso é para ele extremamente doloroso. Há medida que o confronto se aproxima irremediavelmente tal nervoso, tal medo torna-se insuportável, tão insuportável que desaparece momentaneamente, e no instante decisivo tudo se apaga do seu cérebro que luta apenas por manter vivo o seu estúpido corpo. Nesse instante existe apenas na sua mente a bandarilha e o dorso da besta, a glória ou a chacota, o sangue, a agonia, as contorções, a humilhação, virão depois. A isso o cavaleiro apelida, com toda a sinceridade que a sua alma pode abarcar, de uma infinita coragem.

Tal como para o aficionado também para o Cavaleiro o momento de matar o touro no meio de uma arena repleta, talvez devesse aqui chamá-lo de Rejoneador mas não vou entrar agora em tais mariquices, é especialmente marcante, de um deleite que toca, transcendente mesmo. Avança a galope em direcção à besta impiedosa sentindo até uma certa raiva, cortês pois claro, em relação à mesma, que a bravura sem razão, sem raiva ao menos, é apenas estupidez. Piedade? Isso é para os fracos e cobardolas, ele despreza essa gente, cuspir-lhes-ia em cima se tivesse hipótese e se tal não afectasse o seu lado mais cortês, diga-se, quase de um galanteador. Até que, encarando-o senão nos olhos, ao menos nos cornos, cortados pois claro mas que mesmo assim aleijam, lhe crava entre a junção dos ossos do pescoço os 90 centímetros da sua delicada lança da morte. Os aficionados deliram, contorcem-se, gritam, embora com um toquezinho de inveja, o seu nome, ele delira um pouco mais que todos eles, afinal, é ele que está a ser ovacionado enquanto a meio metro de si o touro, 500 kg de carne acaba de se esvair em sangue pela boca, desespera por se manter em pé, por se manter vivo, mas cai, inevitavelmente, morto. E ele sabe que foi o responsável supremo desse tombo, dessa arte suprema que é a morte na arena, por isso mais do que se sentir, bravo, corajoso, valente, enfim, um verdadeiro herói, e disso ele nunca duvidou, sente-se, ao menos por breves momentos, imortal, vergou a natureza, vergaria o mundo.

Repara apenas no final ao passar a mão pela cara que fez um pequeno golpe pouco acima do maxilar, suficiente para muito pouco, mas ainda assim o bastante por lhe atestar a cara e agora a mão direita de sangue, o público em júbilo aplaude ainda mais, que afinal todo o verdadeiro herói também sofre, ao menos um bocadinho. Depois das últimas vénias e antes de abandonar a arena olha uma última vez para o touro, inerte, a ser arrastado pelos cavalos, quase que chega a sentir uma ponta de misericórdia pelo animal, mas diga-se em favor do nosso herói que a sua infinita bravura não permite que tal sentimento chegue a vias de facto, e assim segue para mais uma serena noite de sono, que amanhã o Sol brilhará de novo.


O Touro

Não percebe onde está, só sabe que está escuro, completamente escuro na sala onde o fecharam, o tempo passa, passa muito tempo mesmo, ele não imagina quanto, ele é burro e não tem a noção do tempo como nós, apenas quer fugir dali, quer desesperadamente fugir dali, mas não consegue, ele é burro e não sabe abrir uma fechadura como nós. Começa a entrar em desespero, mija-se e caga-se de medo, começa a sentir muita fome, apesar de a sua memória não ser tão prodigiosa como a nossa, sente uma tremenda vontade de voltar a ver luz, de pastar alguma coisa, então se tudo isso fosse com uma vaca por perto, aí beleza.

Acabam por o tirar de lá, profundamente confuso pouca resistência oferece a que o atem todo com cordas grossas, mas atam-no com muita força, com tanta força que sente as própria patas a ceder, não percebe nada do que se passa, do que querem dele, mas ao menos está vivo, e ainda se sente capaz de fugir dali para nunca mais lá voltar. De um momento para o outro aproxima-se dele com uma serra, ele não percebe o que aquilo é e para que serve, mas o seu instinto diz-lhe que ele deve ter medo, e ele obedece, mija-se mais uma vez enquanto se contorce de dor para se tentar em vão libertar daquelas estúpidas amarras. Começam a serrar-lhe os cornos, a dor imensa, agonizante, apenas é superada pelo meio, e pelo pasmo, porque lhe estão a fazer aquilo? Os cornos são dele, ele precisa deles. Tenta marrar com eles, com o que resta deles, marrar nos 4 homens que lhos estão a cortar, implora na muda linguagem dele que parem, mas não consegue nada.

Já no meio da arena continua sem perceber nada, ou melhor, percebe ainda menos, milhares de criaturas em toda a volta a emitir sons esquisitos com a boca e com as mãos, corre desajeitado em volta de toda a arena numa busca desesperada por uma saída. Chega a, em desespero, bater com o que lhe resta dos cornos nas delimitações da arena, não encontra saída, fica ainda mais aflito, magoaram-no, prenderam-no, cortaram-lhe os cornos, mas pronto, desde que agora o deixem fugir dali para sempre por ele fica tudo bem, amigos como dantes.  Ele é o escolhido, o centro das atenções, o verdadeiro rei da festa, mas ele sentia-se tão bem enquanto touro anónimo.

Criaturas como as que estão do lado de fora, como as que lhe cortaram os cornos, entram também na arena e dirigem-se para ele ora a pé ora a galope, começam por emitir uns sons que ele não entende, são criaturas mais pequenas que ele mas ele tem medo delas, convenhamos que ele nunca se gabou da sua bravura. Mesmo assim corre atrás delas com o que lhe resta dos cornos, não sabe exactamente porquê mas certo é que dali não consegue fugir, o seu instinto, que naquele momento apenas deseja continuar a viver, incita-o a tal, como se tivesse que os derrubar para ter alguma hipótese de fuga. Mas falha, falha totalmente, são eles quem lhe espetam umas coisas floridas e finas nas costas, o que lhe dó imensamente, em tais momentos ele contorce-se antes de tentar ripostar com uma nova marrada desajeitada. Com tudo nesses momentos de imensa agonia para ele é quando as criaturas do lado de fora emitem ainda mais ruído, um ruído tão alto que o apavora ainda mais. Ele é burro como já foi dito pelo que não entende por que o fazem.

Já estava exausto, há muito que teria gasto lágrimas e súplicas se as tivesse para usar, mas ao menos ainda estava vivo, e isso para ele era tudo o que importava, quando uma nova criatura que por qualquer razão que o seu intelecto limitado não entendia o assustava ainda mais que aos outas , entrou pedante e orgulhosa na arena. Tal criatura baralhou-o, cansou-o, fê-lo desesperar ao limite, com movimentos que só ele, estúpida besta, não percebia serem extremamente graciosos. O seu instinto dizia-lhe para acertar ao menos uma vez com os seus cornos mutilados para lhe mostrar que se devia ir embora, que ele se ia defender até ao fim e que era perigoso, mas ele simplesmente não consegui-a, falhava sempre, estava demasiado exausto.  

O touro estava já de cabeça vergada, tal era o cansaço e a dor, quanto ao medo que, pode levar um humano a desistir mas nunca o animal, era tão extremo que o fazia tremer sem já sequer lutar para ao menos encarar nos olhos a criatura que o oprimia. Tudo isso poupou trabalho ao matador que assim apenas teve que, com toda a classe e graciosidade, espetar a espada mesmo abaixo do pescoço do touro, trespassando-o.

Nesse último momento, antes do seu suspiro final, animem-se agora, aficionados, cavaleiros, toureiros, rejoneadores, e ademais figurantes, todos vocês venceram. Porque nesse momento, com as costas desfeitas por arpões que lhe rasgaram a carne, ainda a tremer de dor, medo, desespero, enquanto se esvaia em soluços de sangue pela própria boca, o touro, que apesar de burro daria tudo para aproveitar até à ultima gota este milagre que é a vida, desistiu e desejou que aqueles últimos segundos fossem breves. Apenas triste, triste com a puta da sorte que lhe calhou na rifa.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Caos

Estava escuro o bastante, o frio fazia-lhes pele de galinha, o mar falava, mas eles também.

- Vamos tentar um jogo diferente esta noite, prazer, mas só com palavras.

- Parece-me bem, duvido é que aguentes mais de 5 minutos.

- Bem, eu tinha apontado para 2 minutos, não mais. – Não estivesse escuro o bastante e eles teriam sabido qual dos dois corou.

 - Mas quais são as regras do jogo?

- Vale tudo, menos tocar. – Nisto passou o dedo indicador a menos de um centímetro da cara dela, começando desde a linha dos olhos, e quando já tinha abandonado o queixo em direcção ao pescoço abriu a mão toda e continuou o percurso descendente, sempre perto o bastante para ser doloroso.

- Ela aproximou-se ainda mais dele, de salientar que já antes estavam bastante próximos, o cabelo dela chegou mesmo a tocar-lhe nos braços, servissem as regras para alguma coisa e teria sido desqualificada. – Preferes que te recite um poema ou que te salte já para cima? Disse-o num sussurro, mas com os olhos muito abertos, e a expressão séria, quase triste, porque não se estava a rir. Alguém alheio a eles que a ouvisse, tomá-la-ia por ingénua, talvez mesmo por palerma.

 - Que me saltes já para cima. – Ao que parece os olhos dele nem piscaram.

- Sabias que as palavras são a mais poderosa fonte de prazer? – Ela quase sorriu depois de lhe fazer esta questão, talvez tenha sorrido mesmo, um sorriso muito pequeno que o confundiu, ele não percebeu se se tratava de ironia ou da antecipação de uma constatação em jeito de triunfo.

- São? – Disse-o espantado, até confuso, mas juro, parecia assustado.

- São, mas só porque a seguir vem sempre o silêncio, quer dizer, senão silêncio, ao menos ausência de palavras – De referir que ela não disse estas últimas palavras com especial malícia, podendo bem ter passado por ingénua. – E enquanto as palavras despertam, excitam, adiam, escondem, e às vezes até ensinam, o silêncio, ou pelo menos a ausência de palavras – Desta vez apesar de a malícia continuar aparentemente ausente disse-as mais baixo. – Realizam, expõem, e até desconstroem, o que as palavras construíram. Por exemplo, se eu te dissesse que já só aguento esta “máscara de civilizada e ponderada” mais uns segundos, que estou prestes a render-me à carne e a infringir-te tudo, sim, escusas de arregalar mais os olhos, mesmo tudo, a ponto de implorares por mais e eu te dizer não a seguir, que nem só de prazer se faz o prazer, e só é doce quem não sabe ser mais nada. Bem..se eu te sussurrasse este exemplo ao ouvido arrepiando-te o que tens para arrepiar, – O que aliás ela fez apesar de estarem sozinhos ao menos até onde o escuro o bastante os deixava ver – talvez conseguisse até com que odiasses as palavras, a própria invenção da palavra porque enquanto forem só palavras, não passam de promessas, e as promessas são a única coisa que pode ser vã, a única coisa que pode ser eterna.

 - Lia-se ardor na cara dele, chegava mesmo a morder os lábios, mas não sorria, talvez de alguma forma pudesse estar triste, mas era impossível para o próprio perceber com o quê, o desejo era febril, total. – Tu és bela, e eu não te consigo explicar porquê, não por palavras, não enquanto olhar para ti magoar.

 - Desistes?

 - Desisto.