domingo, 5 de dezembro de 2010

O Louco

Todos os actos têm consequências, cabe-nos somente a nós escolher quais dessas consequências são moralmente aceitáveis e quais não o são, assim pensava o louco.
Enquanto criança e rapaz novo parecia ser alguém normal, ia à escola e a maior parte das vezes fazia os trabalhos de casa, algumas escapadelas às aulas para planos com os amigos e mais tarde para namorar também, chamava-se Teresa a primeira que o levou a faltar às aulas para uns beijos atrevidos e as primeiras juras de amor, e ele parecia um rapaz perfeitamente normal e estável a Teresa. Anos, muitos anos mais tarde outra Teresa entraria numa sala de aspecto velho e amplo, desposada de qualquer toque de conforto Humano, e lá encontraria o louco, calmamente sentado em uma cadeira de um ferro já velho, a olhá-la com um olhar quente e vivo, demasiado vivo para quem já só podia estar morto, e que por isso era o olhar de um louco.
Os anos foram passando, o louco tinha agora 19 anos e estava no final do primeiro ano da faculdade de Economia, a vida passava por ele rápida mas serenamente como quase sempre passa por aqueles que se adaptam às regras da sociedade que nos protege, saía frequentemente com os amigos para beber uns copos, para jogar umas cartas, para tentar tocar uns acordes de guitarra, ou para deambularem pelas ruas mais ou menos despidas da cidade, era assim, um rapaz normal, ou parecia sê-lo, mas havia algo que de há uns tempos para cá o perseguia, não percebia a rigidez imutável da sociedade, como se a acreditasse que a sociedade devesse ceder perante ele e perante os outros, devesse escutá-lo e compreedê-lo e deixá-lo em paz mesmo caso ele fizesse algo que não se enquadrasse nas regras da sociedade, sonhava com liberdade, mas que mais liberdade queria ele afinal, a sociedade deixa-o votar, ver os filmes que quiser e escutar a musica que lhe apetece, e dizer quase tudo o que pensa, agora fazer, bem é claro que não podemos fazer quase tudo o que queremos, e isso ele não compreendia.
Um dia, ainda nesse final de primeiro ano de faculdade, o louco foi apanhado com uma rapariga em poses impróprias dentro da piscina de uma casa que se encontrava temporariamente desocupada, parece que uma idosa vizinha lá da casa os tinha visto a meio da noite pela janela e tinha de imediato chamado a polícia, que os apanhou aos dois a ter comportamentos pouco próprios numa propriedade privada e os levou até à esquadra. Os pais dela chegaram aflitos à esquadra onde ela soluçava também aflita e em lágrimas de vergonha por terem sido apanhados, ela, com o dinheiro dos pais acabou por pagar os 750 euros das duas multas juntas (invasão de propriedade privada e atentado ao pudor) e deixou a esquadra, ele como maior de idade que era optou por não chamar os pais, passou toda a noite na esquadra acordado a pensar em tudo aquilo, estava sozinho num pequeno quarto com uma pequena cama de ar sombrio, não havia grades nem outros presos como nas prisões a sério, e ouvia os policias a falar em outra parte da esquadra que não conseguia precisar, bem como não conseguia perceber o que diziam, e em toda essa noite de profunda solidão e algum medo, não percebeu a razão de ser de estar ali, como se em nada tivesse perturbado a boa ordem da sociedade e portanto não merecesse ser de alguma forma punido. Foi presente a tribunal na manhã seguinte, os pais já lá estavam agora, ainda aflitos por não terem sabido mais nada dele e olhavam-no com ar preocupado e reprovador, tinha-lhe sido nomeado um advogado oficioso, tinha um ar meio emproado e parecia que não lhe apetecia estar ali a defender um caso de delito menor como aquele, o advogado ouviu a sua história comtemplando-o com um olhar que ele hesitava em catalogar como sendo de pena ou simplesmente de incompreensão, e depois de ouvir toda a sua história disse-lhe que o melhor seria ele assumir a sua culpa perante a sociedade, mostrar-se arrependido perante o juiz e pagar uma coima de 750 euros mais custos judiciais associados, nada de mais para assim salvar o seu bom nome e de seus pais e evitar males maiores como a prisão, essa sim cheia de criminosos perigosos e delinquentes. Mas ele surpreendentemente e com um olhar louco rejeitou a proposta do advogado, disse-lhe algo como, que não estava disposto a pagar nenhuma importância material por algo que a seu ver não prejudicou ninguém, que explicaria isso ao juiz até ele compreender o seu ponto de vista, o advogado esboçou um meio sorriso, mas depois voltou a uma postura mais séria e taciturna, e tentou chamá-lo à razão, ainda nem eram 8h da manhã e ele não se tinha levantado cedo para ver um cliente seu por obrigação, cliente seu, perder um caso de forma tão, absurda, tal iria manchar-lhe a imagem enquanto advogado, e ele não tinha largado a almofada tão cedo para isso.
Perante o juiz, e contra todos os protestos do advogado, e gritos e lágrimas, de dor e vergonha dos pais, o louco fez o que prometeu, explicou que não magoou e a seu ver não prejudicou ninguém, que enquanto passeava com ela à noite junto à praia, subiu um pequeno muro para apanhar uma das milhares de belas flores que um arbusto na margem de uma casa à beira mar tinha, e ao colocar-lhe a ela a flor entre os cabelos lhe sussurrou ao ouvido que a casa estava sem ninguém lá, e que tinha uma pequena piscina por detrás do arbusto das flores amarelas, dito isto, e julgando que não prejudicariam ninguém, e que seriam felizes naqueles momentos, saltaram o pequeno muro e mergulharam na piscina. E, continuou ele, a sociedade precisa de pessoas felizes, precisa de regras também, mas por vezes a irreverência, conjugada com bom senso, pode contornar essas regras e tal não pode merecer punição, no limite a sociedade deve caminhar para que as almas que a povoam consigam ser felizes, ou pelo menos se sintam felizes, e se o fazem sem prejudicar ninguém, tal não pode nunca mercer castigo.
E mesmo assumindo que tal castigo era merecido, então não poderia nunca ser substituido por qualquer importância material, o dinheiro não pode nunca evitar um castigo mais severo, porque o dinheiro não pode ter mais valor que a liberdade de uma alma Humana, eu tenho o dinheiro que a justiça me pede, mas nunca o poderia dar sabendo que outros não o têm. Por mais que não compreenda alguns meandros da justiça não vou ser eu a pagar para a corromper.
O juiz depois de escutar atentamente o louco, achou-o claro desprovido de qualquer razão objectiva, via nele um rapaz que se recusava a assumir um erro e que por uma estupida irreverência quase infantil queria enfrentar a justiça “sozinho”, não percebia que a nossa liberdade individual acaba quando começa a dos outros e que devia era agradecer por viver numa sociedade que lhe proporciona educação, segurança e uma boa assistência de saúde e que não deixa ninguém morrer de fome. Assim pensava o juiz enquanto encarava o louco, que lhe continuava a parecer firme na sua posição mas que parecia tremer agora um pouco das mãos, talvez por causa da imponência quase teatral de tudo aquilo, no entanto o olhar do louco, continuava tão absoluto e determinado como no inicio do julgamento. O raciocínio assertivo do juiz ia sendo apenas interrompido a tempos pelos gritos agudos e desesperados da mãe do louco, gritos de revolta, mas sobretudo de vergonha e de incompreensão e de uma profunda tristeza. No final do julgamento o louco continuava irredutível na sua posição apesar de todos os apelos do advogado oficioso, que pensava que devia ter ficado na cama e deixado tão ridículo e perdido caso para outro qualquer aturar, e dos pais do louco, que tentavam em vão chamá-lo à razão. O juiz acabou por encará-lo com um ar de quase piedade e fazendo uma explícita referência a que os seus pobres pais não mereciam que ele os fizesse sofrer tanto pela sua irreverência e devaneio, condenou-o “apenas” a 6 meses de prisão efectiva e 1 ano de pena suspensa por atentado ao pudor, invasão de propriedade privada, roubo (da tal flor amarela), e falta de qualquer sinal de arrependimento.
Pelos olhos de seus pais corriam agora lágrimas de uma profunda tristeza e incompreensão, a sua mãe continuava a berrar e acabou por correr até ao centro do tribunal onde o seu filho se encontrava sozinho de pé, sem exteriorizar qualquer sentimento, e ajoelhou-se perante ele implorando-lhe para que cedesse, para que mostrasse arrependimento, para não passar pelo que o aguardava, para não a fazer a ela e ao seu pai passarem por tamanho sofrimento, para se não dele para ter piedade dela, mas ele permaneceu praticamente imóvel, e disse apenas, em voz baixa e num tom estranhamente calmo, “ Se não posso mudar o mundo lá fora, se não posso amar as pessoas mais do que a sociedade, deixem-me pelo menos cumprir as regras que a sociedade destina a quem erra”, palavras vindas de um louco que não respeita quem devia protegê-lo.

Quase tudo é desprovido de beleza na prisão, e digo beleza não no sentido literal apenas, mas do sentimento que transmite, a eloquência, o profundo silêncio, o coquetterie*, o nascer do dia, a irreverência, o vento a bater-nos no rosto, tudo isso é belo, tudo isso nos faz sentir vivos, e tudo isso nos é tirado na prisão. Passava horas sentado na cela a ler alguns dos grandes clássicos, desde Tolstoi, Truman Capote, Henry Thoreau passando por Dostoievski, reflectia profundamente, dizem que a prisão nos rouba o tempo, mas de facto a prisão rouba-nos tudo o resto menos o tempo, não reparamos no tempo enquanto vivemos, perdemo-lo quando apenas existimos, e temo-lo quando na mais profunda solidão, o sentimosa bombear-nos a razão. O louco ia sendo visitado sempre que havia visitas possíveis pelos pais e pela irmã, censuravam-no no inicio, perguntavam-lhe como estava, se precisava de algo, ele dizia meias verdades, diziam que o amavam, ele perguntava como estavam, e eles respondiam com meias verdades também, dizia que os amava, eles choravam, e iam embora. A namorada, que passou a ser ex-namorada, visitou-o também uma vez na prisão, ele ainda não sabia, mas já não eram mais namorados quando ela o foi visitar, aliás, deixaram de o ser quando ele aceitou naquele acto de rebeldia inconsequente ir para a prisão, acabou por até chorar um pouco quando o viu lá na prisão, disse-lhe que gostava de outra pessoa agora, e saiu.

Passados os 6 meses da pena saiu felicitado por bom comportamento, tanto ajudou na secção da biblioteca como nos sanitários, e até escreveu uma carta ao supremo para protestar não terem ainda reposto os livros do Tolstoi na biblioteca que tinham sido retirados pelos anos de ditadura por incentivarem práticas anarco-comunistas, parece que ainda ninguém tinha dado pela falta deles. Era quase verão e estava já também com uma boa carência de vitamina D. Guardava muita coisa na memória daqueles 6 meses, e havia uma frase de um dos outros reclusos que lhe ocupava por vezes o pensamento “ A maior prisão que existe é a do amor, tal qual todos o definem, cabrão de quem definiu o que é o amor”.

Estava livre de novo, ou pelo menos estava do lado de fora agora, os 6 meses de prisão fizeram-no perder aquele ano de faculdade, os pais claro receberam-no bem, mas sempre com algum ar de profunda incompreensão por ele ter feito toda a família passar por aquilo, e estavam sempre a dizer à irmã para nunca lhes dar um desgosto como o que ele dera. Acabou por julgar que o melhor era mesmo desaparecer uns meses, já que os amigos também estavam ocupados pela faculdade por estes dias, e mesmo quando por vezes estava com eles, encaravam-no de forma meio superior, meio reprovadora, meio de pena até, como se ele se estivesse a tornar louco. Deixou então uma carta para os pais a dizer que os amava muito, que percebia que estivessem desiludidos com ele e que pedia desculpa, mas que precisava de ir viajar durante uns meses, mas que voltaria antes de começar o novo ano da faculdade, e para não se preocuparem que ele talvez estivesse incontactável, mas ia estar bem, assinou, dobrou o papel ao meio, pô-lo em cima da mesa da sala, e saiu.

Levava apenas uma mochila às costas com alguma roupa, alguma comida para alguns dias, umas 2 ou 3 lâminas de barbear, um canivete, uma toalha, escova de dentes, e um corta unhas. Tinha no bolso cerca de 25 euros e deixou o telemóvel, e todos os cartões, crédito/identificação/ carta de condução/… em casa. Caminhou uns quilómetros até uma estrada movimentada e começou a pedir boleia.

Claro que os pais ao lerem a tal carta ficaram aflitos e começaram a chorar, e incapazes de pensar que o seu filho os voltasse a decepcionar assim tão de repente, deduziram que ou era uma brincadeira ou era rapto. Como não adiantava ligar-lhe e ele ainda não tinha dado notícias no dia a seguir chamaram a polícia, esta após ler a carta hesitou em intervir mas os pais choraram tanto que ao fim das tais 48 horas acabaram por emitir um mandato de busca. Acabaram por encontrá-lo 3 dias mais tarde, no sul do país, acompanhado por dois casais de hippies, disseram-lhe que os pais pensavam que ele tinha sido raptado e que era melhor ele voltar, mas que não o podiam obrigar, cumprimentou os senhores agentes, disse-lhes para dizerem aos pais que estava bem e ambos seguiram o seu rumo.

Não tinha sabido mais nada dos pais desde então, nem dos pais nem de mais ninguém que outrora lhe era próximo, sabia apenas dos que ia conhecendo, dos que lhe davam boleia, das vidas que ia vendo, do que se assemelhava ao que julgava que era ser-se livre, mas estava na altura de cumprir a promessa feita aos pais, e acabou por voltar até casa. Ao chegar a casa a mãe ainda o abraçou e disse que estava muito magro, o pai apenas o cumprimentou, e disse-lhe com o autoritarismo da razão, que desta vez ele tinha passado das marcas, que o que fizera à família e aos que o amavam era indesculpável e que se queria continuar com aquele modo de vida o melhor era sair de casa e pelo menos não ser uma má influência para a irmã ainda tão nova. O louco acabou por pedir desculpa e dizer que iria nesse mesmo dia voltar a matricular-se na faculdade e que tudo voltaria a ser como dantes, só que o pai disse-lhe secamente que tinham chegado duas cartas da faculdade durante o último mês a dizer que o seu lugar na faculdade tinha sido eliminado por não ter comparecido a nenhum exame no ano transacto, e por não se ter inscrito nos prazos previstos neste novo ano, estando assim a ocupar desnecessariamente uma vaga no ensino superior, e devia ainda proceder ao pagamento, com multa das propinas em atraso. O pai acrescentou ainda, como um travo de amarga ironia, que o tinha tentado contactado para o avisar, mas que ele se encontrava incontactável rodeado por um bando de ciganos e parasitas preguiçosos.

O louco ficou assim sem saber como agir, estava fora da faculdade, os amigos já pouco lhe ligavam, os pais olhavam-no quase sempre com ar triste ou reprovador, os dias iam passando, a irmã mais nova parecia quase que tentar ignorá-lo, olhando-o de soslaio ou com um olhar tão vago, que vago era tudo o que se podia dizer dele. Pensava em voltar a desaparecer por uns tempos, as mesquinhices que via na cidade, em casa, na televisão, na internet, perturbavam-no profundamente, ele não desejava, não conseguia desejar nem dar, aquela forma de amor que a sociedade é feita para partilhar, e isso é o que mais profundamente define uma sociedade, a forma como define o amor, e por ele ter falhado em aprender ou pelo menos desejar, a definição que a sua sociedade tem de amor, tornou-se louco. Ele não o sabia, mas no momento em que escreveu num papel “ Não me procurem, a eternidade é muito tempo para estar preso” não era ele que estava a fugir, era a sociedade que na sua sabedoria e necessidade de perpetuação estava a expulsar um louco.

Deambulava de boleia em boleia, de terra em terra, ia vendo vidas e sorrisos, e pensava no que tinha deixado para trás, um bom curso superior, uma vida confortável, amigos que até ele ir para a prisão tinham sido grandes amigos, não lhes podia exigir que tudo continuasse igual depois de ele ser um ex-presidiário que julgavam louco, os pais que sempre o apoiaram, mesmo quando ele foi para a prisão, e que apenas por não compreenderem o para eles incompreensível o reprovavam, mas de certeza que o amavam ainda, por tudo isso ele se recriminava agora, até porque ia percebendo que por mais que fugisse, há 4 meses que andava de lugar em lugar e gentes em gentes, tudo era igual, todos se prendiam profundamente a algo ou alguém, todos queriam o melhor para eles, e todos aqueles com quem tinha uma ou outra conversa menos superficial e polida, o olhavam como sendo louco, mas agora estava sozinho, e ninguém quer amar o louco, que por ser louco, não aprendeu a amar.

A espiral de desespero ia aumentando, acabou por arranjar um emprego precário a trabalhar num pequeno café de uma vila Algarvia, e com o salário que recebia alugou um pequeno quarto a uma senhora idosa lá da vila. Os dias iam passando, só havia mais uma empregada no café, era a filha dos donos, era uma rapariga ainda nova e bonita, tinha acabado de fazer 20 anos, e tinha uma ideia do mundo e da vida fechada, linear e objectiva, mas nem por isso menos digna que qualquer outra, estava disposta a amar uma ilusão, desde que a ilusão durasse para sempre, e tal não seria mau, porque as ilusões são quase tudo o que temos. O louco ia ficando amigo dos clientes do café, quase todos eles lá da vila, percebeu que eles, por julgarem que já tinham tudo, eram felizes, talvez ele nunca mais pudesse ter uma conversa profunda sobre as ciências económicas, sobre os clássicos do cinema, ou da literatura, mas podia continuar a lê-los e a vê-los, e mais que isso podia encará-los nos olhos e ver a estranha profundidade e beleza de um olhar realizado, todos eles tinham uma definição de vida e de amor, diferente da dele, mas pelo menos aquele definição ele podia saudavelmente invejar, afinal de contas, ali ele podia pertencer, julgava ele.

Como era quase inevitável, entre duas pessoas solteiras, de sexos opostos, ambas bem-parecidas, e com alguns pontos em comum, coincidências à mistura e sem muitas perguntas retrospectivas pelo meio, acabaram por se apaixonar. Namoravam à já 10 meses, iam juntos às festas da vila, faziam piqueniques por uma pequena serra bonita e pouco conhecida, lá perto da aldeia, trocavam juras de amor, e a partir certa altura, não sei bem precisar quando, estas coisas não têm um dia para acontecer, têm um momento, e a contagem do tempo é diferente quando se trata de momentos, ele até já pensava em casar um dia.

Um dia apareceram dois homens bem vestidos no café para falar com ele, a dicção perfeita que se esforçavam por usar sempre, podia facilmente ser confundida com arrogância, falavam de forma cordial, e acabaram por pedir uns minutos a sós com ele, ele olhou para ela, beijou-lhe os nós dos dedos, e foi com eles até à rua. Acabaram por dizer que o procuravam há mais de um ano por dever 900 euros mais custas judiciais ao estado, o louco inicialmente ficou sem perceber o que se passava, pensou até que fosse uma brincadeira de mau gosto ou um qualquer engano, ao que eles replicaram com documentos referentes à sua última matricula na faculdade, ano esse que ele mal tinha frequentado por causa da prisão. Tudo aquilo lhe parecia ridículo, ele já nem estava na faculdade, naquele ano não tinha feito nenhum exame sequer, vivia agora num sítio quase remoto, e por lá queria continuar, nada disse, mas como louco que era, e a loucura adormece, fica latente, mas não desaparece, não ia pagar e se fosse preciso ia de novo enfrentar a justiça sozinho, a loucura impedia-o de comprar com dinheiro, aquilo que palavras bonitas e eloquência não podem pagar.

Foram chegando ao café cartas e intimações para pagar o que devia ao estado Português, guardava-as sempre e nunca lhe dizia nada a ela, naquele dia tinha-lhe dito simplesmente que aqueles dois homens bem vestidos, quase falsos, o tinham confundido com um criminoso perigoso, e ela ficou assustada, abraçou-o, beijou-o, e as perguntas cessaram. Até que um dia chegaram 4 agentes fardados que saíram de um carro de patrulha e o algemaram, à frente de toda a vila, e à frente dela. Disse-lhe algo como “ O destino é a coisa mais bela do mundo, porque somos nós que o escolhemos”, e entrou no carro de forma estranhamente calma, como se a própria loucura fosse capaz de suplantar a perda e o medo. Acabou por ser presente a tribunal nesse mesmo dia, um novo advogado oficioso tinha-lhe sido atribuído, e estava confiante o advogado porque tratava-se apenas de um equívoco, entre um novo hippie qualquer e a justiça, que se resolvia com um cheque, que com vontade aparecia sempre, mas o advogado subestimava a loucura dele. A sala estava quase vazia, apenas os procuradores do ministério público, o seu advogado, o juiz, ela, e mais dois vizinhos, a compunham, os pais talvez não tivessem sido avisados pensava ele.

Foi novamente louco e inconsequente, recusava-se a pagar, dizia que “ precisava mais de justiça do que de liberdade”, e que “ as maiores prisões são as armas que matam, o dinheiro que manda matar, e o amor, tudo o que fazemos é por amor a nós próprios”, e que “a justiça será sempre imperfeita, mas enquanto a justiça se comprar com dinheiro, a vida humana estará à venda”, os pais não estavam presentes, mas ela chorava a uns bancos de distância dele, as lágrimas repetem-se sempre que à justiça. O juiz não sabia bem o que fazer, hesitava até em condená-lo, mas perante a demonstração de força e recusa em pagar dele, acabou por o condenar, ainda meio atrapalhado até, a 1 ano de prisão efectiva por ser reincidente, mais 2 anos de pena suspensa. Ele não recorreu. Ela insistia e implorava para que ele pagasse, mas ele não cedia, como se sentisse que o seu dever de não ceder às regras da sociedade fosse superior ao seu desejo de amor, como se algo valesse mais que o amor.

Ela ia visitá-lo todas as semanas à prisão no dia de visitas, levando-lhe roupas quentes e bolos caseiros, e escrevia-lhe frequentemente longas cartas talvez de amor às quais ele respondia sempre, até que passados 3 meses na prisão ele lhe envia uma última carta dizendo algo como “ Espero que continue tudo a correr bem contigo, e que as coisas continuem calmas pela vila, que a simplicidade não vá embora de lá nunca, a simplicidade é o mais perto que uma sociedade organizada pode estar da liberdade, e que o café continue com o movimento do costume, como ponto de passagem onde só apetece ficar. Esta é a última carta que te escrevo, e peço que nunca mais me venhas ver nem procures notícias minhas, eu sou o que sou e não o que pareço ser, não fujo, já não consigo fugir, afasto-me, e apenas me afasto porque não sou capaz fugir, não é só a gravidade que atrai, é o amor que repele.

Claro que ela voltou na visita seguinte para falar com ele, voltamos sempre, esse é o mal da perda, faz-nos ter esperança quando já mais nada existe, estavam agora frente a frente na sala de visitas eles:
- Que merda de carta foi aquela, imaginas como passei os últimos dias?
- Não, não imagino, apenas sei como passei os meus.
-E como foi que passaste os teus?
- Não quero falar sobre isso.
-Sobre o que queres tu falar afinal?
-Sobre mais nada, por isso é que te mandei aquela carta.
- Eu é que tenho estado à tua espera, eu é que choro todas as noites por ti, tu é que foste preso, e tu é que me estás a dar uma tampa?
- É melhor para ti não me voltares a ver.
- Tu agora sabes o que é melhor para mim?, e para ti o melhor é não me veres mais?( o enorme esforço que fazia para não chorar e controlar a raiva fazia-a soluçar compulsivamente agora).
-Não sei o que é melhor para mim, nem me interessa saber, e por isso estar comigo não é bom para ninguém. (tinha os olhos muito abertos e ostentava uma certa calma, e apenas desviava o olhar dela para olhar para um relógio de bolso que tinha agora na mão e que ela em tempos lhe oferecera).
- Eu amo-te, desde o dia em que apareces-te pela primeira vez na vila e por lá foste ficando.
- Então se me amas, vai-te embora e nunca voltes para me ver, e se gostas de ti, não te perguntes porquê.
(Chorava abruptamente agora ela, deu-lhe um estalo, chamou-o de louco, vieram os guardas logo a correr, ela saiu, e nunca mais voltou).
Durante aqueles últimos 3 meses quase tudo tinha mudado, um dia, na prisão, tentaram roubar-lhe um relógio de bolso que ela lhe tinha oferecido, tinha uma fina tampa de prata com o nome de ambos lá cravado, e o ladrão não sabia que desde que ele tinha ido a primeira vez para a prisão, aquele relógio era a primeira coisa que alguém lhe oferecia, os ladrões nunca sabem o valor daquilo que roubam. Ele resistiu a largar o relógio, esmurravam-se violentamente um ao outro, o resto dos reclusos que se encontravam por lá fizeram um semi-circulo para observar e aplaudir, o louco acabou por o empurrar com um misto de força e raiva contra as grades de uma das celas, e ele ao bater com a cabeça numa das grades, caiu inconsciente, entretanto chegaram os guardas.

Acabou por morrer passados dois dias num Hospital, já fora da prisão, e o louco foi novamente presente a tribunal, o qual como ele já estava preso se limitou a dizer que o novo julgamento seria daqui a 2 meses, estava em estado de choque, o seu pensamento ia sendo bombardeado com centenas de imagens diferentes, imagens de quando era criança e lançava papagaios na praia e lhe ofereciam carros telecomandados, imagens das guerras de balões de água, do primeiro beijo que deu a Teresa, e do último também, imagens da flor amarela roubada, imagens dos pais e da irmã, imagens de nadar ou velejar num mar a perder de vista, imagens do juiz que o condenou pela primeira vez, imagens de olhares reprovadores e de acusação, imagens dela e do momento em que lhe ofereceu o relógio e da forma como ela mordia levemente o lábio inferior quando estava nervosa, imagens da vida a esvair-se do olhar do ladrão a quem ele roubara a vida, imagens de tudo o que tinha roubado, não a mais ninguém, nunca tinha roubado senão a flor amarela, mas apenas ao que o tinha tentado roubar, e novamente imagens dos papagaios que lançava ao vento. O novo advogado oficioso que lhe foi nomeado avisou-o logo que como havia testemunhas a confirmar que o assassinato não foi intencional e que se tratava de uma situação de auto-defesa e de um acidente, a sua pena nunca seria superior a 5, alertou-o também que a defesa iria ser implacável ao acusá-lo de ter roubado uma vida Humana e tudo o que isso acarreta, não imaginava o advogado o estado em que estava a cabeça do louco, e como essas mesmas consequências não só as da morte mas também as da vida já lhe perseguiam o pensamento. Depois do advogado se retirar ele escreveu-lhe aquela última carta.

A sua sanidade ia-se deteriorando de dia para dia, naquele dia, depois de ela se ir embora, ainda sentiu um pouco de humanidade nele, sentiu desejo de liberdade, perda, e da sua estranha forma, amor. Mas enquanto o tempo ia passando cada vez lhe era mais difícil concentrar-se num pensamento, tanta era a culpa e mágoa que sentia e tamanha era a incompreensão e distância por parte dos outros, todos estamos sozinhos sempre, mas o problema é que ele agora sentia-se sozinha sempre, a verdade magoa, mas a sociedade pode magoar mais.

Não fora condenado a pena alguma pela morte acidental do ladrão, pelo menos era o que a sua percepção louca lhe dizia, foi considerado acidente e tudo seguiu em frente, tudo ia passando e estava na hora de sair da prisão, ele tinha passado os últimos meses completamente isolado de tudo, não falava com ninguém, passava horas sentado na cama da cela a escrever anotações que ninguém entendia num pequeno bloco de papel, e outras horas passava-as em frente a um pequeno espelho olhando fixamente para as esferas profundas, negras e centrais dos seus próprios olhos, procurando respostas, sem saber as perguntas. Julgava agora na sua mente perturbada que a mãe lá tinha estado à uns dias a visitá-lo, mas talvez fosse apenas a sua mente perturbada a confundi-lo, ele já não desejava nada, e para ele a culpa era deles, de todos eles, e do acaso até, se não fosse a velha coscuvilheira, o arbusto das flores amarelas, a casa desocupada, aquela vila algarvia, o relógio de bolso, e a grade que desfez a cabeça do ladrão, se não fosse tudo isso a sua loucura podia não ter sido descoberta pela sociedade, talvez o acaso tenha até influenciado, mas acasos surgem sempre, pelo menos enquanto a vida for um acaso, e ele não podia nunca ganhar porque a sociedade somos nós, e ele apenas ele, as regras essas, sempre as mesmas.

Gritava compulsivamente no dia em que lhe queriam devolver a liberdade, no dia em que segundo a justiça ele tinha adequadamente pago por todos os seus crimes, tentou agredir os guardas prisionais que o libertavam, implorava por ficar lá, porque por certo ia voltar ele sabia-o e não aguentava passar por tudo de novo, porque a verdade é assustadora e ele queria fugir dela, continuava a gritar em desespero, mas os guarda-as continuavam firmes a mandá-lo embora, disse que ia voltar a matar e os guardas pararam de imediato, sentiu uma forte picada nas costas e adormeceu.

Quando voltou a acordar estava perante uma senhora de ar calmo e vestindo uma bata branca impecavelmente bem tratada que lhe perguntou suavemente se ele sabia onde estava agora, ele disse que não e ela respondeu amavelmente que ele estava num hospital psiquiátrico, e que ela era uma das psiquiatras que lá trabalhava. Ele ainda estava sobre o efeito do sedativo e mal se mexia da cadeira agora, enquanto ela lhe ia fazendo perguntas sempre de uma forma estranhamente calma,
- Como se chama? (começou ela por perguntar)
Ele tentou responder, mas surpreendentemente não era capaz de dizer o próprio nome, nada lhe ocorria, e as suas mãos tremiam bastante, talvez ainda fossem efeitos do sedativo, mas de facto à muito que não pensava nisso, sempre tantas imagens a correr-lhe pelo pensamento, tanta vontade de mudar, de se adaptar, de saber e de amar, e agora nem o próprio nome lhe ocorria, voltou a sentir uma forte dor de cabeça que se lembrava agora já ser recorrente, sentia-se perdido e abandonado. Acabou por dizer apenas “ Desculpe doutora mas não me recordo”.
- Tem medo de alguma coisa em especial, sente-se perseguido? (Estranhamente para ele ela parecia não ter dando importância ao facto de ele não se lembrar do próprio nome).
- Sinto sim doutora, sinto que todos me perseguem, porque todos são iguais, todos querem o mesmo, perpetuar-se, têm-se como medianamente importantes e por isso desprezam os outros, parecem não saber que essencial é cada um deles, e por isso me perseguem, porque não fujo da verdade.
- A que verdade se refere?
- Que estamos todos sozinhos, o dinheiro é um papel pintado que compra e vende vidas, e o amor é a coisa mais egoísta que temos.
-E o que sente em relação à sociedade?
- A sociedade destrui-me, lá fora agora já não seria mais um, seria apenas a miséria, e a miséria apenas semeia mais dor e miséria, não acredito na justiça, para mim agora a morte é a única coisa realmente justa. (ia desenhando num pequeno pedaço de papel círculos dentro de círculos cada vez mais pequenos, até por fim restar apenas um ponto no meio de tantos e tantos círculos, e desabou em lágrimas.
- A psiquiatra permanecendo estranhamente calma, disse-lhe apenas que iria ficar internado no hospital para observação por tempo indeterminado, e depois entraram dois homens no consultório para o levar.
- Diga-me só o meu nome doutora. (disse ele agora mais calmo)
- O senhor há-de se lembrar é melhor assim. (ele olhou para uma bata azul que tinha vestida desde que acordara ali e reparou que em números grandes sobre o peito tinha o número 621).

Os seus pensamentos vão-se tornando cada vez mais turvos agora, lembra-se de injecções, de comprimidos, de não sair daquele quarto quase nunca, dos olhares distantes, da forte luz branca, das conversas cada vez mais perdidas no tempo com psiquiatras, enfermeiras ou visitas, já não consegue precisar, as imagens passam agora mais lentamente pela sua memória, mas não lhe dizem nada já, não sente nada, tem agora um belo relógio de bolso a preencher-lhe os pensamentos, a imagem não quer desaparecer da sua mente, de repente mete as mãos em todos os poucos bolsos que tem e não encontra nada, começa a gritar em desespero e a bater com força na porta e na parede, aparecem pessoas todas vestidas de branco no quarto e de novo a luz também branca, ele em desespero agarra-se a uma daquelas batas e grita e chora pelo relógio, ninguém parece saber ou querer saber do que fala, apenas sente uma forte picada com se lembra no instante que esta o perfura de levar tantas outras vezes e adormece. Tudo se repete, mas cada vez menos vezes, cada vez menos pensamentos, cada vez menos que fazer com eles, de vez em quando uns papagaios ao vento, uma flor amarela, um relógio de bolso, mas já não esboça reacção agora, até o sentimento de perda lhe fora roubado, tentou uma última vez gritar pelo único nome que tinha na memória, Teresa, mas apercebeu-se que tinha perdido a capacidade de falar, apenas uns sons estranhos e perturbadores saíam quando tentava falar, voltou a adormecer, e a acordar novamente, ou talvez fosse mais um sonho, mas quando já não se tem nada, tal não importa mais, é igual.

Não sabia bem quanto tempo tinha passado desde a sua última memória, duvidava até que o agora fosse realmente agora, foram buscá-lo ao quarto que quase nunca largava, e ajudaram-no a caminhar até à sala de visitas, soava-lhe familiar agora que lá estava, e neste momento o saber que se sempre se esquecia de lá ter estado, perturbou-o, acabou por se sentar numa cadeira de ferro e olhou em frente, do outro lado de uma pequena mesa estava Teresa, era estranho mas não hesitava quanto ao nome dela, ela parecia-lhe tão viva, tentava olhá-la fixamente, mas há medida que uma ponta de vida lhe corria nas veias novamente os seus olhos iam-se humedecendo, tentou falar, mas não conseguia, ela talvez por já lá ter estado e já saber, talvez por a terem informado, não tentou sequer que ele falasse, continuava a olhar para ela, e a imagem do relógio, à muito perdida voltou a passar-lhe insistentemente pela cabeça, não sabia já de onde tinha vindo aquele belo relógio de bolso coberto de prata, e precisava desesperadamente de saber, apontou insistentemente para o relógio que ela tinha no pulso, ela sorriu, julgando perceber, e disse-lhe as horas, ele desistiu de tentar saber mais, já não interessava, tinha perdido tudo, e continuou apenas a olhá-la durante algum tempo, até ela se levantar, lhe beijar a cara e lhe dizer até para a semana, talvez volte pensou o louco, se o agora for agora.

domingo, 21 de novembro de 2010

Laika

Estávamos no verão de 1957, Laika, na altura ainda uma cadela anónima vagueava pelos arredores de Moscovo, não era um ser extraordinariamente inteligente como algumas das mentes russas da época que foram pioneiras a colocar pedaços de metal e plástico a girar à volta da Terra, dependia de milhares e milhares de anos de evolução e de um instinto apurado para seguir o seu rumo e cumprir o seu pacato ciclo de vida na Terra. Um dia nesse Verão quente de 1957, enquanto dormia debaixo de uma qualquer árvore grande para se proteger do Sol, foi capturada por uns indivíduos bem vestidos que emitiam muito rápido sons que ela não compreendia, tentou fugir, o instinto dizia-lhe para não confiar e fugir, mas já era tarde, poucos instantes depois de sentir algo afiado prefurar-lhe a carne de uma pata traseira, adormeceu.
Acordou com os trambolhões que a carrinha que a transportava para Moscovo ia dando, não se conseguia mexer ainda, apenas ia tremendo de forma involuntária, não sabia onde estava, os barulhos que ouvia eram-lhe completamente estranhos, só via escuro à volta, estava profundamente assustada quando finalmente conseguiu soltar um latido enquanto se mijava de medo na carrinha. Ainda se mexia com dificuldade quando finalmente a carrinha parou e os dois homens que a tinham capturado abriram uma porta da carrinha e pegando-a pelo pescoço levaram-na até um minúsculo compartimento para onde a atiraram e fecharam, ela ia tentando reagir, mas ainda estava demasiado atordoada e apenas soltava uns ganidos de aflição.
Os que a tinham trazido para aquele compartimento foram-se embora enquanto ela tentava recompor-se e entender alguma coisa daquilo, conseguiu finalmente pôr-se de pé, estava aflita e ia batendo violentamente com a cabeça e as patas nas grades do compartimento enquanto gania de dor,começou depois a ouvir latidos aflitos de outros cães no corredor onde estava, estavam talvez em outros compartimentos, não os conseguia ver mas de certa forma aqueles sons familiares acalmaram-na, ainda tremia de medo mas acabou por se resignar, e aninhar-se no chão do compartimento, os outros cães também já tinham parado de ganir, acalmou-se e notou que precisava de beber água e comer qualquer coisa, reparou que no fundo do pequeno compartimento estava um recipiente com água e ao lado algo seco que ela nunca tinha visto mas que lhe cheirava a alimento,e por isso comeu, e apesar de ainda perdida e assustada acabou por adormecer.
Acordou passadas umas horas com o barulho de um portão a abrir, 3 homens avaliavam todos os cães do corredor e emitiam sons que ela continuava a não compreender, um dos homens abriu o compartimento mas não o suficiente para ela fugir, e aninhou-se junto das grades, olhava-a fixamente fazendo-a ficar paralisada de medo enquanto tentava ladrar, todos os outros cães ladravam agora, mas ele parecia não se importar,continuava a fixá-la com olhar, parecendo de certa forma satisfeito com o que via, acabou por agarrá-la e imobiliazá-la de forma rápida mas cuidadosa, e ela estava tão petrificada de medo que mal reagiu, apenas esperneava mas de nada lhe servia. Desta vez no entanto viu tudo a acontecer, foi levada novamente até uma carrinha, e de repente ouviu algo a fechar e tudo ficou escuro novamente,sentia que estava em andamento mas não sabia como, tentava desaparecer dali, mas nem sequer imaginava onde estava. O tempo ia passando, de vez enquanto sentia que a jaula onde se encontrava estava parada e ouvia sons estranhos mas que começavam a parecer-lhe comuns, talvez já tivessem passado dias de viagem, mas ela não sabia o que eram dias, apenas sabia que lhe doía tudo, que tremia de medo, e que tinha que fugir, era isso que o profundo desejo de vida lhe dizia.
Passados dois dias e meio de viagem chegaram a uma área longínqua e árida da União Soviética conhecida como Baikonur, ela pouco tinha dormido durante toda a viagem e o medo e o desconhecido continuavam a perturbá-la, a curiosidade nunca fôra o seu forte, apenas queria viver. Quando a tiraram de dentro da carrinha colocaram-na de imediato em uma pequena jaula transportável, e de dentro da jaula ia vendo agora centenas de homens que se riam dela enquanto tentava desesperada e desajeitadamente fugir de dentro da pequena jaula metálica em que era transportada e ia ganindo aflita. Encontrava-se dentro de um enorme espaço fechado,via luzes a apagar e a acender e imagens a mudar constantemente em ecrãs,todos lhe pareciam distantes a olhar para esses tais monitores, acabou por os perder de vista quando a colocaram numa pequena sala muito iluminada e também com monitores sempre a mudar com imagens que ela não entendia, e muitos fios, molas, metais e agulhas que a assustavam apesar de não saber nem onde estava nem o que queriam fazer com ela ou para que era tudo aquilo. Acabaram por colocá-la em cima de uma placa de metal e prender-lhe as patas e a cabeça lá, latia muito em desespero enquanto se mijava de medo em cima da placa, acabaram por limpar o mijo com qualquer coisa seca e iam-lhe ligando uns fios ao corpo, acabou por conseguir fixar uma palavra que os Homens na sala repetiam frequentemente, "Laika" e essa palavra que ela não sabia ser o seu nome, aliás ela nem sabia o que era um nome nem queria saber, assustava-a. Passado algum tempo acabou por desistir de tentar espernear e ladrar,parada não lhe doía nada agora, e os fios assustavam-na mas não a magoavam, e então ia apenas latindo consternada e em surdina, enquanto todos os homens na sala se pareciam concentrar num monitor com uns picos altos e baixos junto a ela, e no final, mesmo antes de finalmente lhe desapertarem a cabeça e as patas pareciam felizes e batiam com as mãos uma na outra.
Acabaram por a levar para um compartimento ainda mais pequeno do que qualquer daqueles porque tinha passado nos últimos dias, ladrou ao início ainda mas desta vez não teve resposta de outros cães, estava sozinha e acabou por aninhar-se apertada e calar-se, até para tremer lhe faltava espaço e nem conseguia levantar-se,tinha também uns fios ligados às patas e às costas,e à sua frente apenas dois canos de onde acabou por descobrir que vinha água e comida, e ela, mesmo aflita ia sempre comendo e bebendo para sobreviver, afinal era tudo o que ela queria, sobreviver.
O tempo ia passando, muito tempo, vários dias, iam passando pessoas perto dela e ela latia quando os via e abanava o rabo até, mas ignoravam-na agora, tirando um homem de óculos que de vez em quando se aproximava dela e lhe espetava algo doloroso no dorso enquanto ela gania imobilizada naquele espaço mínimo e com todo o corpo a doer-lhe.
Quando a dor já era quase insuportável acabaram por a tirar de lá, pareciam ansiosos e nervosos eles agora, Laika sentia isso, desta vez quando a tiraram do apertado compartimento onde estava já nem tentou fugir, acabaram por lhe enfiar algo branco e espesso pelo corpo, e por lhe colocarem um capacete de onde de vez em quando lhe parecia vir um gás estranho, não imaginava o que lhe estava a acontecer mas estava demasiado atordoada para reagir, pegaram nela, desta vez totalmente imobilizada pelo fato e levaram-na durante uns minutos ao colo até uma enorme e assustadora estrutura em bico, enquanto à sua volta centenas de homens continuavam a bater com as mãos e a gritar Laika, e outros tinham uma estranha lente com uma grande estrutura preta por traz à frente da cabeça, tudo isso a assustava, o instinto e o profundo desejo de viver continuavam a dizer-lhe para fugir, mas ela já não conseguia sequer tentar com dignidade.
Colocaram-na numa pequena cápsula mais ou menos do tamanho do mínusculo compartimento em que tinha estado, continuava com o fato grosso e estranho posto e por dentro deste voltaram a passar muitos fios para lhe ligar ao corpo, os que lhe faziam isso pareciam consternados, mas embora já sem ver continuava a ouvir gritos eufóricos com aquilo a que eles chamavam o seu nome. Acabaram por fechar a cápsula e sair esses tais homens consternados, o silêncio agora era total e o seu cansaço era já tanto que acabou por adormecer. Pouco depois um barulho tremendo acordo-a, num último esforço tentou levantar-se mas depressa embateu contra a cápsula pequena em que estava, e depois desse barulho uma força que não percebia fê-la sentir-se com dores lacinantes e colada ao chão da cápsula, o calor era imenso agora, quase que desejava o fim daquela existência ridícula embora o instinto e uma estranha sede de vida lhe dissessem para não desistir, aguentou umas horas ainda, a força já não a comprimia agora, mas o calor entrava-lhe pelo corpo derrentendo-a letamente e sufucando-a, o medo era imenso agora batia com a cabeça em cima da cápsula para tentar respirar, não imaginava onde estava, talvez outra vez na carrinha, talvez a caminho de casa, apenas a viver e por isso tinha o dever de aguentar, ela não sabia, o desespero, a falta de ar, o medo eram tão grandes que acabou por se sentir a explodir por dentro, e fechou uma última vez os olhos, dos Homens apenas palmas havia um brinquedo novo a girar no céu, e afinal ficou provado que já era possível um ser vivo sobreviver umas horas no espaço.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Antes de tudo

Choro,
Perdi-te, ainda antes de começar,
Mesmo junto de onde eu moro,
Fugiste, tornaste-te em ar?,

Não, apenas partiste,
E lá eu não posso chegar,
Nada disse, não podia ganhar,
Eu sabia, tu não, apenas me viste,

E assim o tempo parou, no meu alpendre,
Porque antes de naufragar, quis amar,
E antes de tudo estava o mar,

4 Estações

Outono
Já nada é como ontem, quase tudo é pior, e pior pode ser na mesma bom, ou suficiente, mas é pior. Luto, ou digo lutar, as árvores não perdem de livre vontade as folhas no Outono, mas perdem-nas, e ficam despidas, mas vivas. Consigo imaginar-me contigo amanhã, mas consigo imaginar-me sozinho também, gosto de ti, gosto muito de ti, e por isso te dou a verdade, ou pelo menos, a minha verdade, mais do que amar alguém, tu precisas de alguém para amar, alguém que tenha carne para abraçares e por quem te sacrificas e esperas igual, eu não, eu tenho encontrado a razão na mais profunda solidão, não me consigo prender a quem quer uma prisão. Lembro-me de te fazer surpresas, de contar os minutos para estar contigo, de te oferecer flores e de te escrever cartas desnecessárias, quando isso acaba, quase tudo acaba, menos o amor, se o houvesse. O amor, esse estado de profunda sensibilidade à vida e a tudo o nos rodeia, não desperta já quando estamos juntos, resta a melancolia, o efémero conforto do comodismo, o medo de mudar, e a saudade, essa eterna aliada do medo, porque a saudade, não tem medo.
Tudo o que vivemos será sempre nosso, só nosso, pelo menos enquanto houver memória, sabe bem a vida junto de ti, mas sinto que nunca houve amor, ou algo que se lhe assemelhe e realmente exista, e assim, por egoísmo, por mim, ou por ilusão, te digo, ou quis dizer, alguma coisa que entretanto esqueci, e por isso te foste embora, talvez nada mais importe agora.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Quatro Estações

Verão

Fujo daquilo que não é belo, procuro-te, procuro os teus defeitos, porque a perfeição não é bela, é perfeita, e os defeitos são belos, porque são teus. Assim vou passando os dias, procurando-te mesmo depois de te encontrar, a vida passa sempre, segue o seu rumo, não me importo mais com tal, já não digo amo ou adoro-te a toda a hora, digo a verdade agora, que é amo-te, senão uma palavra apenas, que é um beijo, senão contacto físico, que é perder-te, senão tudo o que tenho.
A passagem do tempo rouba-nos primeiro o corpo do que a alma, por isso os velhos ainda conseguem amar, quem tem alma e um corpo bonito, tem quase tudo, quem apenas tem alma, tem verdade. Para te amar chega-me a alma, mas comecei por desejar o teu corpo bonito, percebi à muito que a vida nos oferece beleza e magia suficientes para tornar supérflua a beleza física, mas, quando às vezes fecho os olhos, sem ser para dormir,e sem qualquer pressa de os tornar a abrir,o nosso passado mais distante alegra-me. Recordo-me da primeira vez que te vi, do enquadramento perfeito de tudo, os teus olhos cruzaram os meus, estava frio e chuva e parecias meio desenquadrada, seguravas um pequeno livro na mão, descobrimos 3 ou 4 dias depois que só duas palavras do prefácio a chuva não tinha dissolvido, os nossos olhares quase se capturaram, ainda hoje não sei qual deles fugiu primeiro, coraste à chuva (talvez eu tenha corado também), começaste a andar mais depressa para apanhar um autocarro que passava por ti, tropeçaste no chão molhado, ajudei-te a levantar, a tua pele suave mas decidida e o teu corpo esculpido em infinitas unidades universais de belo eram absolutamente desarmantes, a chuva parecia deslizar pelo teu cabelo liso, usando-o como um eterno escorrega, quis declarar-me a cada um dos teus fios de cabelo naquela noite, a tua beleza pareceu-me avassaladora quando te dei a mão para te ajudar a levantar, olhaste-me com algo a que só posso chamar magia, e senti a tua respiração junto da minha, talvez tenha tremido um pouco, tinhas a mão esfarrapada e algumas gotas de sangue ainda vivo escorreram da tua mão para a minha, sorriste, e perdeste o autocarro. Sonhei contigo tantas vezes antes de te beijar, e muito mais vezes ainda depois de te amar, nunca sonhei no entanto algo tão belo e avassalador como tudo naquela noite, por isso foi perfeita, pelo menos mais perfeita do que eu alguma vez consegui imaginar.

A beleza é o tudo o que é importa mundo, é aquilo porque vale a pena lutar, é o que falta descobrir, e o que já esquecemos também. Belas são as ondas do mar antes de se desfazerem em espuma, bela é a espuma que fazem, belo é o absoluto azul do mar, belas são as cores vivas dos corais, belas são as covinhas que fazes nas bochechas quando quase sorris, belo é quando sorris, bela é a vida, contigo. Lembro-me do nosso primeiro beijo, e da nossa primeira discussão, da primeira vez que fizemos amor, e do primeiro momento em que mesmo sem te dizer ainda, soube que era contigo que queria continuar a acordar de manhã, lembro-me de quando apanhaste uma pneumonia e passámos duas semanas, horas e mais horas debaixo dos lençóis, os dois, com os aquecedores ligados e a televisão desligada, lembro-me da primeira viagem de carro que fizemos juntos, da minha falta de jeito para mudar um pneu que se furou no segundo dia da viagem e dos teus gritos estridentes e de como me abraçaste roubando-me até espaço para o ar passar quando saímos daquela avioneta que parecia ainda ter combatido nas duas Grandes Guerras e que mesmo assim fazia piruetas inverosímeis, lembro-me de te ver chorar, de te abraçar, de te fazer cócegas, de te ver rir sem motivo, e a penteares o cabelo à noite, de te virar as costas, de ser injusto contigo por vezes, e de no quase silêncio da noite, sem roupas, e sem luz, escutar a tua respiração, calma, bela e cheia de algo a que por não ter nome chamo hoje de amor, e partilhar assim a vida e o sono contigo. Tudo isto é vida passada, memórias apenas, e que é o amor que construímos, se não um gigante pedaço de tempo, recordações, vida e saudade, emoldurado e guardado dentro de nós os dois.
Assim, enquanto tiver memória, irei recordar deste último dia a forma como enganaste a dor e sorriste por mim, e quando a memória também me deixar, e te perder, apenas sei que irei amar-te de novo um dia, não sei quando ainda, mas se o tempo é mesmo infinito, para sempre é demasiado tempo para ficar longe de ti.

domingo, 16 de maio de 2010

Quatro Estações

Primavera

Fazes-me sentir bem, fazes-me querer ver flores a desabrochar e gostar das pétalas, fazes-me querer dar-te a lua todas as noites, preenchida ou em quarto minguante, fazes-me querer assaltar o tempo,assaltava-o para ter mais 10 minutos contigo, fazes-me parecer louco, querer ser louco, louco para quem me vê e não sabe, apaixonado por ti, que sabes, e mais que isso apetece-me olhar-te e não dizer nada, dizem por aí que estar parado e apenas olhar é perda de tempo, mas eles não te conhecem meu amor, perda de tempo é estar longe de ti, longe de ti sinto-me uma virgula que separa dois números inteiros ou duas palavras que querem estar juntas, uma virgula é um ponto final com uma lágrima de atrelado, ver-te sorrir seca qualquer lágrima.
E antes de me apetecer tudo, apeteceu-me que gostasses de mim também, foram tumultuosos os tempos em que queria apenas que reparasses em mim, que percebesses que gostava de ti e que por efeito directo logo te apaixonasses por mim, eu soube que gostava de ti quando uma vez aproximaste os teus cabelos encaracolados em espiral do meu pescoço e disseste algo bonito( não interessa o quê agora, quase tudo é belo na primavera), a partir daí queria andar de mãos dadas contigo, porque de mão dada ao teu lado qualquer sítio é alado, queria ver-te adormecer e a acordar a também, a espreguiçares o corpo quando acordasses, e a perguntares se o que estava dentro daquela caixa da pastelaria, eram mesmo as tuas miniaturas de chocolate preferidas, queria fazer uma linha imaginária que unisse todos os sinais do teu corpo, não para tentar adivinhação, mas apenas porque sim, mas nada dizia, pensava que eu era como a noite que não tem que dizer que nos roubou a luz para olharmos para as estrelas, ou que tu eras como uma borboleta de asas vestigiais que percebe tudo apenas porque sim, enganei-me, as tuas asas não eram faz de conta.
Sabes talvez cada um de nós seja mesmo um mero ponto quase insignificante em toda a grandeza do universo, mas pelo menos contigo faço uma linha, e tudo o que existe são pontos, linhas e amor, amor são as tulipas, as joaninhas, o pôr do Sol e as ervas aromáticas, são os outros e tudo o que eles têm, os pontos somos nós, e a linha é a aresta do paralelepípedo.
Tudo parece tão belo, tudo se enquadra, percebo agora os desenhos das crianças, melhor que toda a pintura abstracta, desejo aquilo que os meus olhos vêem, e aquilo que eles não vêem mas dizem,e o que eles não dizem também, não me lembro de eles já terem dito que tens cócegas na barriga, percebo as cartas de amor, escrevi-te uma anteontem, está debaixo da tua almofada.
E quando escondidos debaixo dos lençóis, ou fora deles, mas algures, fazemos amor, sei que te amo, não mais do que quando estávamos os dois vestidos ainda, ou quando te vejo a fazer exercícios de matemática, ou quando inventamos constelações( lembraste do paralelepípedo?) mas não menos também, porque as flores têm pétalas coloridas, as borboletas têm asas vistosas, os pavões rabos em forma de leque, e as cacatuas bicos cor de marfim, e nós temos alma, carne e palavras bonitas.
Sei que vai ser para sempre, enfrento contigo todo o tempo que o tempo nos quiser tirar, e a “Lacuna”* também, se nos vier assaltar,vamos conquistar o amanhã com pistolas de água, junto de ti tudo é belo, e o belo nem sempre é fácil, mas faz-nos esquecer que a chuva pode molhar, que o frio pode constipar, que as abelhas podem picar, e a verdade sabes é que isso nem lhe rouba a lógica, sabe bem abraçar-te já ensopada, com as gotas de chuva a caírem sobre nós, e beijar-te depois mesmo constipada e de nariz entupido e levar-te o pequeno almoço à cama no dia a seguir( para a semana é a tua vez), e vais querer bater-me por isto mas abraçar-te enquanto choramingas que uma abelha assassina te fez um hematoma gigante no braço também tem o seu encanto, porque o amor não faz nada parecer belo e insano, mas ser belo, objectivo e nosso, aquilo que era apenas triste quando éramos dois pontos. Não quero voltar a ser uma vírgula.

*Referência directa do autor ao filme "O brilho Eterno de uma Mente Vazia"

terça-feira, 27 de abril de 2010

Quatro Estações

Inverno

Não voltarei a amar,dizem por aí para amar o próximo, para amar os passarinhos do jardim, eu amava-te a ti, não às borboletas, elas amam-se umas às outras, não precisam de mim,seria caricato.
O amor é faz de conta, faz o frio parecer quente, faz Janeiro parecer Junho, e ao mesmo tempo gostar de Janeiro, mas o frio é sempre frio, agora quando as minhas mãos tremerem de frio volto para junto da lareira, não quero apanhar uma constipação. O amor é como o álcool e as drogas, mas quando compramos drogas são nossas, o amor como não se vende, é sempre emprestado, e não quero que me o voltem a pedir de volta, viva o álcool e as drogas, que quando acabam se compram mais, com o amor não estamos sozinhos, mas vamos acabar sozinhos. Nem o sexo precisa de amor, não voltarei a confundir fisiologia com filosofia e que se lixe a oxitocina.
Para quê andar de mão dada, à muito que aprendi a andar sozinho, andar de mão dada na rua só para dizer ao mundo que gostava de ti, é ridículo, só o amor nos faz esquecer isso, e amar é isso mesmo, parecer sempre feliz, porque o ridículo, é feliz. A natureza nunca precisou de amor, apenas de relações de conveniência, e por nunca tentar parecer feliz, alegra-nos quando a observamos, o leão é o rei da selva, a viúva negra come o macho no final, as flores tentam ser bonitas, vivas e elegantes para atrair quantas abelhas poderem, algumas comem-nas mesmo (penso que nunca te tinha chamado planta carnívora).
Os dias parecem passar mais devagar agora, o que quer dizer que me roubavas tempo, parece que cada uma das farpas que me cravaste no coração precisa agora de tempo para cicatrizar, felizmente que estudei em fisiologia que o músculo cardíaco quando morre, apenas cicatriza e não recupera jamais, não quero voltar a ter um coração funcionante, pelo menos não para amar, o amor é a coisa mais insignificante do mundo, porque não se vê, até as estrelas que estão tão longe e que nós nunca iremos tocar, não arranjam desculpas e mostram-se todas as noites, porque em nenhuma noite todo o céu é nublado, e os cloroplastos mesmo sendo pequeninos e trapalhões não se escondem do microscópio, mas ao amor, a esse ninguém o vê.

Sabes, sinto-me como se durante tanto tempo eu tivesse sido um número inteiro, e tu a raiz quadrada que eu amava, mas tu executaste a raiz, e eu nunca mais serei um número inteiro agora, sobrevivo amparado por uma vírgula, mentiste quando disseste que seria para sempre, mentiste de cada vez que me beijaste, porque sempre que te beijava eu sabia que era para sempre, as mentiras andam sempre de mão dada com o amor, enquanto duram chama-as de certezas, quando acabam serão certezas para outros que apareçam, o amor nunca tem dúvidas, porque o amor não é cego, é estúpido.

Alegra-me, alegra-me saber que nunca saberás se algum dia chorei por ti quando ouvi a tua música preferida dar na rádio ou quando ouço aquela voz metálica a dizer as paragens do comboio , nem se passei horas apenas à espera de um telefonema teu, nunca saberás se alguma vez mudei a televisão de canal porque o filme que estava a dar me fazia pensar em ti, e se depois desliguei a televisão porque a publicidade do outro canal me fazia lembrar-te a ti a mudar um pneu, e se então abri a janela do quarto, mas logo voltei a fechá-la porque os caracóis da minha vizinha do 2º andar me faziam ter saudades dos teus, e se então finalmente adormeci, para logo depois acordar de um sonho em que eu e tu éramos duas borboletas gigantes,ou pelo menos tínhamos asas, e se quando ainda meio atordoado olhei para o relógio, era exactamente a hora a que o teu despertador costumava tocar. E nunca o saberás, não por ser a minha forma camuflada de orgulho manter-te sem saber, mas apenas porque nunca vais perguntar. Talvez minta.
Vou começar a viver amanha,

Tudo me rouba tempo,

Menos viver, amanha,

Para viver cederei o meu tempo,

Estou farto que me o roubem,

Amar rouba-me o tempo por uma fresta,

Viver é o tudo o que ainda arde,

Por ser tudo, o que resta,

Vou começar a viver amanhã, à tarde
A vida leva-me a pele e não se nota,

Tu roubas-me o tempo e ninguém vê,

Enquanto escrevo cartas que ninguém lê,

Espero que me indiques uma rota,


Não sei para onde, não quero saber,

Para quanto mais longe puder ser,

Melhor,

Enquanto caminho não penso,

Que morri,

Por o mar ser imenso,

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Transcriptase Reversa

Transcriptase Reversa

“Era noite e estávamos sozinhos numa rua que parecia deserta,olhavas-me, talvez triste, apenas triste, retirava-te decidido algo do ventre, senti um impulso no braço,as nossas línguas desenrolavam-se lentamente, sentia a tua saliva na minha boca, ia desaparecendo como se lá nunca tivesse estado, a tua língua largava calmamente a minha boca fazendo-me cócegas nos lábios ao passar, e eu incrédulo olhava-te agora sabendo que te ia beijar, e não te conhecia.”

E assim começa, ou acaba, já não sei bem no que acreditar, a história de um amor possível, entre quem não sabia amar.

“ Estávamos sentados no café, sabia que te ia beijar a seguir, mas o a seguir estava cada vez mais longe, as nossas mãos desenlaçaram-se e sentia agora um gosto amargo a café na boca, tínhamos duas chávenas de café vazias em cima da nossa mesa, e íamos tendo uma conversa meio estranha sobre uma amiga tua, que aparentemente tinha morrido apunhalada, a certa altura chamei-te Teresa, e assim fiquei a saber o teu nome, pensava que talvez tudo fosse um sonho, enquanto o café me queimava os lábios”

“Um arrepio percorria-me o corpo agora, e também os mamilos me ardiam um pouco, seguravas na mão um saco com o que me parecia ser um vestido amarelo, enquanto o ar frio da rua nos batia no rosto. Estávamos dentro de uma loja, continuavas com o saco na mão e dirigíamo-nos agora para a caixa da loja caminhando ao contrário, ao consumares a compra parecias distante, distante como nunca mulher alguma parece quando consuma, eu discutia contigo para te oferecer o vestido, o que me pareceu estranho, aliás ou estava completamente embasbacado por ti e não sabia, ou então algo de bastante estranho se passava, especialmente quando ouvi a senhora da caixa dizer vigorosamente 129 euros e 90 cêntimos, sempre fui um bocado sovina nessas coisas, o vestido amarelo cobria-te agora parcialmente o corpo enquanto te espreitava na porta do provador, não te favorecia especialmente, mas o que me saiu dos lábios foi “Nenhum tecido que te esconda a pele pode ser bonito, mas esse é o melhor de entre os razoáveis”. Desentrelaçaste a tua mão da minha e foste experimentá-lo, reparei naquele vestido escondido entre tantos outros, só para isso uma loja pode ter tantos vestidos, para se esconderem uns aos outros, peguei naquele que daqui a pouco carregarias num saco, e disse que tinhas que o experimentar, não sei porque o fiz, saíamos agora da loja, com um sorriso cúmplice e mãos entrelaçadas.”

“Estávamos sentados num daqueles baloiços de jardim, estávamos nus, sentia-me meio envergonhado e excitado, ao ver os teus contornos que desconhecia, libertos das roupas que nos fazem imaginar, fitava-te e parecias descontraída, feliz, liberta, cúmplice, como se por amor perdesses o pudor, era noite cerrada e há nossa frente apenas 3 vultos, o meu, o teu, e um outro, parecia trémulo o outro, e parecia ostentar algo como um largo chapéu que o distinguia, ondulando com a brisa da noite, mas tudo é tão igual na escuridão, beijávamo-nos incessantemente agora, mordiscava-te os lábios, os lóbulos das orelhas, os contornos dos ombros e aquela fina camada de pele que cobre as falanges dos dedos, gemíamos os dois enquanto fazia-mos amor, rebolávamos na relva enquanto o fazíamos, sentia um desejo profundo de ti, de controlar o meu corpo, as minhas palavras, a minha saliva, e sentia um ardor no peito que me fazia esquecer tudo o resto, sorrias de forma genuína e ias percorrendo o meu corpo com os lábios, paraste nos meus mamilos e trincaste-os repetidamente, havia um candeeiro no jardim, meio fraco, meio distante, mas que te iluminava timidamente a pele morena, toda ela, que a fazia contrastar com o verde da relva e o branco das margaridas que lá habitavam, era noite sim, mas tu estavas viva, tão viva, e eu também sonhava estar. Enquanto te apertava o sutiã e te vestia o top, olhavas fixamente para mim, com as faces rubras agora, e com um meio sorriso e olhar expectante, sentia-te nervosa, ansiosa, como se não tivesses a certeza de gostar o bastante de mim para o que íamos fazer, de não me conheceres o bastante não sei, ou se o que sentias por mim era correspondido, como se os sentimentos ainda pudessem importar alguma coisa, bem ou então estavas apenas nervosa por estarmos prestes a ficar nus e a fazê-lo num jardim, meio recatado e com margaridas no chão, mas sem persianas para correr ou uma porta para fechar. E agora sentados, vestidos desta vez, no mesmo baloiço que experimentaríamos nus daqui a pouco, beijei-te e disse que te amava, há nossa frente continuavam três vultos, tentava em vão olhar para trás, mas não conseguia, como se o tempo não fosse mais meu, de qualquer forma não poderia estar ali mais ninguém, por certo teríamos olhado enquanto o tempo foi nosso, e assim, recordando o daqui a pouco, rezava baixinho para gostar de ti”

“Estávamos num balão de ar quente a talvez uma centena de metros do chão, parecíamos felizes, eu estava agarrado a ti, com as mãos entrelaçadas sobre as tuas clavículas e ia-te beijando os cabelos, nunca tinha reparado neles como agora, desejava poder enrolá-los nos meus dedos e puxá-los um pouco, numa demonstração instintiva e banal que podia bem ser de amor, louvá-los um a um se para isso tivesse tempo, ou então, apenas trincá-los. Bem, mas mais que tudo isso tinha um terrível medo de alturas e o balão ia oscilando ao sabor do vento, pelo que provavelmente ia agarrado a ti para disfarçar o medo que sentia, como se, qual pássaro alado gigante, me pudesses salvar das leis da gravidade, se um dos mil devaneios que agora me passavam pela cabeça se concretizasse, sim não são só vocês que têm esse comportamento meio infantil e sem lógica aparente, só que nós normalmente recusamos admiti-lo, temos talvez vergonha do admitir, e então beijamo-vos os cabelos.Beijaste-me, enrolas-te os teus braços no meu pescoço, abriste os braços e fixaste-me o olhar, por impulso talvez, segurei-te pela cintura e fiz com que tirasses os pés da base do balão. Observávamos agora a vida em ponto pequeno lá em baixo, tinha a mão esquerda esfarrapada, e de vez em quando, uma gota de sangue parecia subir lá de baixo, de onde a vida nós apreciávamos, e era devolvida à minha mão ensanguenta e houve uma vez em que tu me seguraste na mão ensanguentada e lhe sugaste o sangue, não sei bem porquê um arrepio percorria-me a espinha, às vezes a vida parece algo demasiado pequeno para valer a pena, era assim que me sentia lá em cima, em cima de tudo o que alguma vez irei ter, sabia agora que tu eras a única que realmente importava, desejei dizer-to naquele momento, mas não disse, parecia demasiado compenetrado a olhar para baixo, como se procurasse ver alguém assim em ponto muito pequenino, por vezes os meus olhos saltavam da paisagem para ti, e dizia que te amava, lá de baixo nada me dizia nada, nada era meu, afinal, quanto mais de cima vemos, menos temos.Estávamos a perder altitude quando reparei numa casa com um jardim manchado de branco, parecias distante, acenaste afirmativamente, disse-te que seria bom irmos lá os dois juntos dar uma volta, só nós os dois, e agora que continuamos a perder altitude as manchas brancas dividem-se em minúsculas margaridas, seguro com toda a força uma das cordas do balão com as mãos, sinto-me tonto e desequilibrado, tu sorris, um solavanco, e aterrámos."

“Estamos estendidos na areia com a respiração ofegante, olhamo-nos, mas não dizemos nada, e sorrimos, desta vez, estamos vestidos, pouco vestidos,muito molhados, mas vestidos. O Sol sobe lá longe, lentamente sobre o mar, anunciando o inicio do fim da tarde, nós continuávamos deitados na areia a tremelicar de frio, meio abraçados, cúmplices, enquanto os últimos raios de Sol hesitavam em aquecer-nos,sorris e dizes que não, pergunto se te magoaste, magoo-me um pouco mas não digo nada, sinto-me a cair na areia, por um instante vejo tudo à roda. Corríamos ao contrário mar adentro, em direcção a uma onda gigante que parecia fugir de nós, e agora parados, no meio da espuma do mar, beijávamo-nos como se fosse a primeira vez, fitávamo-nos, e eu tinha vontade de te beijar de novo, saudades que tu soubesses que me ias beijar, desejo que os meus mamilos ardessem de novo, e que me voltasses a sugar o sangue da minha mão magoada, saudades de te ver misturada com as margaridas do jardim, mas os meus olhos pareciam estupidamente longe da vida, longe de ti. Levava-te em braços e ia caminhando ao contrário para fora da água do mar e já fora do mar, dizias para te largar que a água estava fria, mas não era isso que os teus olhos, e que a tua expressão diziam, só vocês conseguem fazer isso assim. O Sol continuava a subir calmamente no céu, parecendo que até ele queria por uma vez fugir da escuridão, aquecendo-nos agora a pele ainda virgem de mar, enquanto nós, sentados na areia ia-mos vendo as ondas sempre iguais que o mar traz e depois leva, como se existissem apenas para os apaixonados as verem, beijei-te o ombro aquecido pelo Sol e mordisquei-te a orelha, sorrias e olhavas-me de uma forma que eu só podia sonhar em retribuir,dizias que te fazia cócegas, coloquei-o na tua barriga desnudada, peguei talvez meio ao acaso num caranguejo bebé que parecia fugir do mar, sabia agora que estava apaixonado por ti ”

“ Brotavam-me lágrimas dos olhos, chovia torrencialmente e era noite, estava ajoelhado sobre uma mulher de tez clara que não conhecia, parecia soluçar de dor e pânico enquanto os olhos dela se abriam, e a mancha de sangue que lhe ensanguentava todo o vestido amarelo ia desaparecendo, a sua pele ia ganhando um pouco de cor à medida que o sangue e a vida lhe eram devolvidos,tentou sorrir, beijou-me os lábios, sussurrou-me ao ouvido algo como “ para quê esperar?”, um qualquer carro aproximava-se no horizonte em marcha atrás, não abrandava, vi-te a ti pela primeira vez, ias ao volante daquele carro cinzento já velho, o teu olhar estava ausente, vi o chapéu dela a voar para longe, passaste-lhe por cima, uma dor lancinante percorria-me agora o coração”

Voltavam a correr-me lágrimas pelo rosto, percebo agora que a memória só serve para me odiar, vi-te desvanecer à minha frente com a faca que te cravei no ventre, continuavas a olhar-me, apenas triste, segurei-te para não caíres no chão “para perceber tive que me apaixonar” foram as únicas palavras que te consegui dizer, sorriste, como se já nada mais valesse a pena e vi os teus olhos a fecharem, vencidos pelas próprias pálpebras, pousei-te lentamente no chão, a rua continuava deserta, e matei-me, ou pelo menos tentei, não por ela, mas por ti.