domingo, 22 de novembro de 2009

A rapariga de gelo

Esta é provavelmente a história mais estranha que alguma vez aconteceu, ela era mesmo de gelo.
Bem, a história podia começar com um melancólico “há muito, muito tempo, quando ainda se escreviam cartas de amor”, ou com um expectante “ naquela manhã de Novembro, fria, muito fria, mas nunca suficientemente fria”, mas, e porque foi o que aconteceu, garanto-lhe caro leitor que foi assim que aconteceu, começa com a rapariga de gelo a caminhar pelas ruas da cidade de top, shorts e havaianas, numa normal tarde de Verão. E ela era mesmo de gelo, não se trata de qualquer tipo de hipérbole ou metáfora forçada, até as pernas dela, bem torneadas e realçadas pelos calções justinhos, bem eram lindas, mas eram de gelo, de um gelo profundamente límpido com um suave tom azulado, e o resto do seu corpo assim o era também, de gelo, e ousava andar ao Sol sem derreter, estranhamente os seus olhos eram verdes, de um verde absoluto e profundo, mas mesmo assim, frios, o belo também pode ser frio.
Ela tentava ser simpática para as outras pessoas, tentava sorrir ao senhor da mercearia, mas a simpatia deste ia-se quando as mãos deles se tocavam no momento dos trocos, causavam-lhe repulsa as mãos belas mas geladas dela, em contacto com as mãos macilentas, enrugadas, mas humanas dele. E sempre que tentando ser delicada e tocava ou beijava as faces de alguém, fazia com que se afastassem atrapalhadamente por causa daquele gelo que não compreendiam, um dia quando ainda era bem mais nova, nova apanhou-se sozinha com o vizinho engraçado do 3º esquerdo, e sussurrando-lhe ao ouvido disse, “gosto de ti”, e ele, que até se sentia atraído pelo belo corpo que ela já tinha, fugiu de medo e vergonha por causa daquela respiração gelada dela junto ao ouvido e pescoço dele, por causa de ela ser de gelo.
Bem, mas voltando à estranha história, ela caminhava em trajes curtos pela rua naquela tarde de Verão, recebendo olhares de soslaio de homens que com ela se iam cruzando na rua, e reparavam naquele corpo bem torneado e apetecível, embora de gelo, mas quando passavam realmente perto dela, quando um olhar se cruzava, tinham medo, mostravam esse medo, e desapareciam apreçados, enfim, que se pode mais esperar de um triste espécime que em tempos, orquestrou guerras sangrentas por causa de um belo par de pernas, mas depois não consegue abrir o coração a uma mulher (a rapariga de gelo tinha mesmo estes pensamentos sobre os palhaços que içavam a bandeira olhando de soslaio, e depois se afastavam amedrontados, não se tratando assim de qualquer subjectividade do autor no que ao complexo universo masculino diz respeito).
Assim eram todas as relações e afectos da rapariga de gelo, duravam um olhar atrevido ou um sussurrar gelado, também assim o fora com os seus pais, sim, todo o ser, por mais estranho, belo, diferente ou desdenhado que seja, resulta de dois prévios genomas, e o caso dela, belo ser humano feito de gelo, não fora, em momento algum, diferente. A sua mãe viveu até ela nascer, morreu de complicações no parto, fora essa a verdade que lhe contaram mais tarde, o pai fugiu ao vê-la, perfeita e bela ao nascer, mas já ai de gelo, e nunca mais fora visto pela cidade, talvez tenha ido para outra cidade, outro país, outro mundo onde não nascessem crianças de gelo e onde pudesse ter um filho com carne igual à sua, talvez seja agora um homem bem sucedido, e feliz por ter filhos que apresenta aos amigos, que talvez até já tenham namoradas e namorados de verdade, bem mas todas estas vidas imaginárias de seu pai, são os pensamentos que em tantos anos no orfanato lhe surgiram e ficaram.
No orfanato pouco lhe falavam também, as outras crianças tinham medo, as professoras e funcionárias tinham receio, passava tempos e tempos sozinha, era dispensada da maior parte das tarefas e de todas as brincadeiras, as amizades, namoricos e grandes paixões, vivia-as pelos livros e filmes antigos que preenchiam a velha biblioteca, sítio onde passara grande parte daqueles anos, apaixonou-se pelo James Dean e pelo Marlon Brando, chorou no final do Casablanca, quando ele por a amar tanto desistiu dela, e teria dado um par de estalos à Scarlett se pudesse, por ela quase sempre ter querido apenas o que nunca poderia ter no “E tudo o Vento Levou”.
Entre pensamentos confusos lá chegou ao agora seu lugar de trabalho, era telefonista numa multinacional qualquer, ligava para uma lista infinita de números para tentar impingir uma quantidade infinita de produtos de que quase ninguém precisava (sim é certo que nos apetece dar um tiro a essa gente chata que nos liga enquanto jantamos para nos tentar vender um colchão de água equipado com 3 tipos diferentes de massagem e revestido de um tecido com um suave aroma a alfazema ) mas foi o único emprego que arranjou onde ninguém tinha, nem por um instante apenas, que tocar nas suas mãos geladas ou sentir o gelo que emanava da sua respiração. Trabalhava numa sala ampla, sentada numa das muitas secretárias, em que se passava o dia a tentar impingir aquela lista infindável de coisas da empresa. Tinha a sua secretária empilhada de papéis, que quase lhe tapavam o obsoleto telefone com o qual passava o dia embrenhada, e recomeçara agora a marcar os números da imensa lista que tinha interrompido para ir almoçar, e pela qual ganhava à comissão.
Bem, e as conversas eram normalmente de um de dois tipos, ou:
-Boa tarde, estou a falar com a Sra. Olívia Cruz?

-É a própria, a que se deve o seu telefonema?

- Pois bem, estou a ligar-lhe para lhe falar da campanha de Verão da METROPOLIS, temos ofertas fantásticas a pensar em si.

-Nessa não me apanham mais, 4h fechada numa sala com o meu Armando a tentarem
impingir-nos um colchão de água por já sei lá eu quanto, devia ter lá marisco dentro ou o raio que o foda…Piiiiiiiii

Ou então…
-Boa Tarde, estou a falar com a Sra. Celestina Lopes?

- É a própria, de que se trata?

-Pois bem, estou a ligar-lhe para lhe falar da campanha de Verão da METROPOLIS, temos ofertas fantásticas a pensar em si.

-Hum…Mas eu de momento não estou interessada em comprar nada sabe..

-Mas ai é que está, nós temos mesmo ofertas para si, não tem que comprar nada

-Bem não me diga que agora a METROPOLIS anda a oferecer colchões e máquinas de lavar…

-Bem isso não, mas sabe, oferecemos uma batedeira eléctrica a todos os que vierem à nossa demonstração de colchões de água e ortopédicos no próximo sábado à tarde…

-E não se paga entrada? A batedeira pelo menos funciona?

-Sim a entrada para a demonstração com os nossos profissionais é inteiramente gratuita e a batedeira tem 2 anos de garantia.

-Então e a tal demonstração é onde e a que horas afinal?

-Enviaremos uma mensagem escrita para o seu telemóvel com a hora e o local marcados, e permita-me agradecer desde já a sua presença no domingo Sra. Celestina, até breve e disponha sempre.

-Até uma próxima menina

Mas naquela tarde, por entre umas comissões ganhas e insultos fugazes, algo de diferente aconteceu,

-Boa tarde, estou a falar com a Senhora Lurdes Pinho?

-Não, está a falar com Diogo Saraiva, mas porquê…?

-Estava a ligar por causa da nova campanha da METROPOILIS, mas devo ter-me enganado a marcar o número, peço desculpa Diogo, e o resto de uma boa tarde.

-Espere…

- Diga,

-Não que eu acredite no destino, e menos ainda dou valor a trocas de um número ao acaso, mas acredito em vozes bonitas…

-Que quer dizer com isso..?

- Desculpe, sei que não o devia ter dito assim, mas há algo na sua voz que me impediu de desligar a chamada, é bom falar consigo, só para a escutar de volta,
- Bem, agradeço-lhe as palavras, deve ser por eu ser de gelo, mas se não se importa tenho que continuar o meu trabalho…

- De gelo? Bem de gelo somos todos quase sempre, e é o gelo nos permite viver num mundo assim…Eu tenho duas operações para fazer agora à tarde, mas não me apetece desligar, apetece-te?

(Algo aconteceu à rapariga de gelo neste momento, não pode ter sido atracção física, porque apenas o escutava pelo telefone, e muito menos amor, não me lixem, o amor não surge assim, poderia até ser apenas compreensão, a forma como ele a encarou por ser de gelo, mas, e isso ela sabia-o bem, para ele, o gelo dela era metáfora. Por isso chamo-lhe algo apenas, dir-me-ão que é impreciso, aceito a imprecisão, mas terão de me dizer, o que há afinal de preciso no coração de uma mulher)

-Não, não me apetece, liguei para impingir colchões e aspiradores, e vou passar o resto da tarde a fazê-lo, mas agora apetece-me falar e não desligar, mesmo os momentos de silêncio sabem bem, o silêncio não é sempre igual.

-Confesso que de facto de colchões e aspiradores não preciso por agora, mas ambos precisamos de jantar logo à noite…

-Essa é a tua forma, nada subtil, de me convidares para jantar?

- Depende, …é essa a tua forma subtil de aceitares o convite?

-Bem, agora ficava-me bem dizer que nem queria aceitar o convite, mas a forma como me prendeste a uma resposta obriga-me a aceitá-lo…

-Mas ao invés de dizeres isso dizes…
-Encontramo-nos às 8?

- No Atlâtico?

(Um silêncio quase confrangedor, ouvem a respiração um do outro do lado de lá do telefone, é estranho, porque o que fica por dizer num silêncio entre duas almas assim, não representa nada ao pé do que eles, em silêncio, desejam. E sinuoso é o caminho do desejo, pelo menos enquanto a carne nos reveste os ossos e o sangue nos percorre as entranhas. Mais algumas respirações trocadas, sentidas, e ele desligou, ou ela desligou, não sei, ela não sabe, que interessa?)

Claro que, e o esplêndido universo feminino que me perdoe, no preciso instante em que a rapariga de gelo poisou o telefone, um enorme burburinho se abateu sobre a sala, as outras telefonistas, algumas ainda novas e bem-feitas, outras já com mais alguns anos, casadas algumas, e normalmente bem entroncadas, comentavam todos os detalhes da conversa dela, normalmente em surdina, mas por vezes deixando escapar algumas frases soltas, “ Achas que ele vai sequer chegar ao pé dela ou foge quando perceber que vai ter um encontro romântico com um boneco de neve?” “ Coitada, coitada dela e dele” “ Sorte tem ela em ter um coração de gelo, vai custar-lhe menos” “ Ela que vá mas é com o corpo bem tapadinho, que pode ser que ele aguente pelo menos o jantar…se ela pagar a conta”, estavam já todas abstraídas da lista infindável de coisas que tinham para impingir por telefone, e a pouca misericórdia meio trocista que ela ia ouvindo no que lhes escapava entre dentes devia-se às certezas, dadas pela vida, que ela apesar de bonita, delicada e bem torneada, iria ser chutada por quem quer que fosse o rapaz do outro lado da linha, porque afinal, ela era de gelo.
Entretanto a noite chegou, e com ela chegaram as 8h, e assim chegou o encontro. Ela tinha saído apressada do trabalho, e seguiu para casa a passo acelerado, para ainda ter tempo de tomar um banho, secar o cabelo (finíssimos filamentos, tão finos que apesar de serem de gelo ondulavam ao vento), aplicar em todo o corpo uma loção hidratante…Sim é verdade que ela era de gelo e provavelmente não teria necessidade alguma de tomar um banho assim antes do encontro, de lavar o cabelo de gelo com aquele champô novo, e especial para cabelos sensíveis, da L´oreal, de aplicar aquela panóplia de cremes hidratantes, de experimentar todos os 8 vestidos que tinha no armário, alguns mais que uma vez, e depois de finalmente ter escolhido um, voltar a trocá-lo porque afinal não combinava com os sapatos. Sim, não tinha necessidade alguma de tudo isto, mas afinal ela era uma mulher, e as mulheres precisam disso, não para se tornarem mais bonitas, mas para acreditarem que o são, além de que, e talvez tal sirva de desculpa para explicar momentos mais “caricatos”, como o de sacar um cabelo que afinal, era de gelo, este era o seu primeiro encontro, e o leitor sabe-o bem, quando assim é o coração bate mais depressa, e isso explica o que alguém com uma normal pulsação de 65 batimentos por segundo não percebe...Colocou um batom vermelho que lhe realçava os lábios, quase como se desse carne ao gelo, e saiu.
Encontraram-se à porta do Atlântico, ela não sabe a que horas ele chegou, porque quando às 8h lá chegou ele já lá estava, e estava, diga-se, bastante bem apresentado, tinha cabelos pretos meio desalinhados, meio inclinados para a esquerda, olhos castanhos tipo avelã, uma camisa aos quadradinhos engraçada e sapatos em vela, e era bonito o rapaz e segurava um ramo de rosas azuis na mão, e ela vestindo o belo vestido vermelho escarlate que acabou por escolher (e que claro combinava com os sapatos), foi até junto a ele com o coração acelerado.
(É claro que quando a viu, primeiro ainda ao longe, a aproximar-se, e depois junto a ele, percebeu que ela era mesmo de gelo, bela, mas de gelo, e certamente que isso se notou na sua expressão facial, mas, recompôs-se rápido da surpresa e olhou bem para ela, primeiro tentou olhar através dos profundos olhos verdes dela, ia-se lembrando da voz dela enquanto a percorria com o olhar, enquanto ela se aproximava, enquanto deixava de reparar, que afinal ela era de gelo.)
Claro que quando ela chegou junto dele, quando se apresentaram e trocaram as primeiras palavras e ele sentiu o respirar ofegante pela expectativa e pelo momento, mas sempre gelado dela, ou quando deram dois beijos depois de se apresentarem e ele sentiu os lábios belos, mas gelados dela, na sua pele morna das faces, bem nesses momentos ele sentiu-se estranho e deslocado ali, mas de certa forma ele sentia algo por ela, gostava de a ter ali ao lado dele, de ouvir a voz dela assim tão perto mesmo que isso o arrepiasse de frio, e de sentir os lábios dela na pele dele, mesmo que ao inicio só sentisse frio, e assim com um sorriso nervoso e de olhar penetrante deu-lhe as flores que trazia, dizendo apenas “trago-as porque me disseram uma vez que as rosas são a única flor que por ser tão bela, célebre e de si apaixonada, nunca invejou, e agora são tuas para te invejarem a ti”, e ela sorrindo, encostou-as ao peito, meio coberto por aquele vestido vermelho escarlate, e agradeceu. E assim, Diogo e a rapariga de gelo, que mantinha as rosas azuis contra o peito, entraram no restaurante.
Sentaram-se numa mesa junto à janela, com vista para o mar, e mesmo sendo de noite notava-se a eterna e efémera silhueta das ondas do mar, passaram o jantar a falar de trivialidades, ele falou-lhe da infância traquina, das grandes festas do secundário e dos memoráveis anos na faculdade de medicina, das viagens que fizera pela Europa, e do seu desejo de correr o mundo, ela, bem ela entre poesia e cinema ia-lhe falando dos sonhos, e das poucas trivialidades da vida que o gelo não lhe roubara, e acabaram, quais promessas vãs que se esbatem quando a noite se vai, com a promessa mútua de que ainda iriam viajar juntos um dia, talvez à paradisíaca Austrália, quem sabe, que interessa?
Pouco antes de saírem do restaurante no entanto, esqueceram por momentos as trivialidades, que por vezes se parecem demais com verdades de circunstância que nos impedem de dizer a verdade, e é certo que é verdade tudo o que sentimos, mesmo o que não dizemos, mas por vezes não podemos pedir de mais aos outros que adivinhem tudo,

- Apetece-me dizer-te a verdade…

- Qual verdade?

-Que apesar de tudo gosto de ti

- O tudo é eu ser de gelo…?

-Não o tudo é que dos 24 anos que já vivi, não me lembro de nada agora, só de ti

-Pois mas eu sou de gelo, e por mais que apeteça mudar isso agora, desde sempre e para sempre ou só por esta noite, não posso, nunca poderei.

-Sim, tu não podes percebo-te, mas eu posso

-Como farias isso?

-Já o fiz, olho para ti e apetece-me tocar-te, beijar-te, mordiscar-te, abraçar-te, basta assim para não seres de gelo?

-Não sei, mas basta assim para te amar

Saíram do restaurante de mãos entrelaçadas, e aos beijos, longos beijos aconchegados, e juras e mais juras de amor sussurradas, que para sempre serão só deles, sim ela ainda era de gelo, e ele continuava a sentir frio, mas sem nunca pensar ou lhe ocorrer sequer largá-la, parar de beijá-la e de desejá-la, assim é um coração cego de amor, sente o que há em redor, mas logo esquece quase tudo.
Entraram depois no carro dele, um Volvo vermelho já com alguns anos, com alguns arranhões na chapa, mas irrepreensível no interior, e enquanto o carro começava a andar e ia tocando na rádio a Walk Away dos Franz, acabaram por se beijar, abraçar, arranhar, mordiscar, de forma diga-se, convenhamos, pouco própria para quem apesar de tudo tentava conduzir, e teria sido um momento delicioso (é sempre delicioso vermos as situações “constrangedoras” que acontecem aos outros), se um “agente da autoridade” tem apanhado a rapariga de gelo a, vamos lá, condicionar o ângulo de visão do condutor…Acabaram no entanto por chegar junto do apartamento dele sem percalços de maior, bem, o facto de ela ter ficado com uma perna entalada entre o manípulo das mudanças e os estofos do carro, é um percalço, mas não de maior.Com alguma agilidade e perseverança, lá saíram ambos do carro e foram abraçados e aos beijos subindo as escadas até ao 3ºesquerdo, os pensamentos e racionalidade estavam congelados pela chama que os consumia, ninguém pensa num momento assim.

O apartamento era bastante simples, tão simples que o tornava belo, no hall de entrada havia apenas uma cómoda de linhas quase rectas, coberta por recordações de viagens passadas, desde as “fotografias da praxe”, passando por postais meio gastos todos escritos na parte de trás, talões manuscritos, bilhetes picotados e outras peças de artesanato local ou pessoal, e até um instrumento musical meio esquisito que lembrava uma flauta de pã gigante e que ele prometera um dia aprender a tocar. Também o quarto dele era de uma beleza simples, mas agora o belo era em tons de vermelho, não tanto por causa da decoração do quarto, em que só os cortinados e tapetes eram meio avermelhados, mas por causa do batom vermelho forte que lhe cobria os lábios e do vestido, de vermelho igual, que lhe tapava parcialmente o peito e descobria as pernas, era simples, e era belo,

-Sabes, não era suposto acontecer assim.

-Assim como?

- Eu de gelo, e tu de carne…

-O desejo não é de carne ou de gelo, é de ti…

-E quem sou eu afinal?

-És a mulher que eu amo desde que me ligaste e disseste por engano “Boa tarde, estou a falar com a Senhora Lurdes Pinho?”, soube pela tua voz que me ia apaixonar por ti…

-Bem, Lurdes Pinho também não te ficava assim tão mal, convenhamos, mas parece-me que não ia amar assim a senhora Lurdes.

Enquanto se beijavam, enquanto quase se mordiam abstraídos do mundo, enquanto tudo isso ele começou por lhe desapertar aquele vestido vermelho escarlate que lhe ia cobrindo o corpo, e depressa estavam os dois completamente nus. Então ele começou a beijar-lhe o pescoço e os ombros perfeitamente definidos e enquanto ela lhe entrelaçava os braços no pescoço arranhando-o até, pressionando-lhe as vértebras e mordiscando-lhe o queixo e os lábios, ele começou a beijar-lhe e acariciar-lhe os peitos, que talvez por serem de gelo estavam perfeitamente arrebitados, depois por um momento olharam-se apenas, trocaram olhares de súplica, de desejo, de medo, de compreensão, de ansiedade, de expectativa e porque não, de amor…Ele não sentia frio abraçado a ela agora, os beijos eram quentes, tamanha é a ilusão do amor, parecia até que ela estava a derreter, deixaram-se ambos cair na cama e assim fizeram amor.
Quando acordou, horas mais tarde, já o Sol nascera, não a viu deitada a seu lado, estava sozinho no quarto, e a seu lado apenas os lençóis encharcados, ocorreu-lhe naquele instante que o gelo pudesse ter derretido, e toda ela era gelo , que tivera que por uma vez amar para depois desaparecer para sempre, para o gelo se tornar em água e ela em nada, há sua volta no quarto apenas as rosas azuis que lhe oferecera e as roupas deles espalhadas pelo chão, e entre os lençóis, meio encharcado também, um pequeno papel que dizia “Existem príncipes, existem princesas também, mas os contos de fadas não existem”, Diogo percebeu que algo não batia certo, mas é sempre tarde demais depois do nascer do Sol, soube que não mais a veria, e diga-se a verdade, algumas lágrimas lhe escorreram pelo rosto, percorrendo a barba desalinha dele até ecoarem no chão, olhou uma ultima vez para o vestido vermelho dela, agora engelhado e parecendo vulgar, e servindo-se do pretexto de pegar no papel com a mensagem esquisita pareceu por instante acariciar o lençol molhado, depois levantou-se, atirou o papel para a cómoda do hall e foi tomar um banho, pensaria em tudo aquilo depois, afinal, ele era de carne e osso.
Anos mais tarde, enquanto passeava pela baixa da cidade, cruzou-se com o que juraria ser ela, agora de carne e osso deambulando descontraída pela rua, o seu coração acelerou, porque se não o amor, a nostalgia e a surpresa também aceleram um coração, e pensou em chamá-la, em dizer qualquer coisa agradável, ocorreu-lhe nesse momento, que afinal nunca soubera o seu nome.

A tua música

Ontem à noite cheguei a casa sozinho no carro, e ao chegar começou a dar uma música da tua banda preferida na rádio, deixei o rádio ligado, saí do carro e fixei o céu, estava singularmente belo ontem à noite, tão belo que me doeu imaginar quão bom seria teres estado ali comigo,