domingo, 21 de novembro de 2010

Laika

Estávamos no verão de 1957, Laika, na altura ainda uma cadela anónima vagueava pelos arredores de Moscovo, não era um ser extraordinariamente inteligente como algumas das mentes russas da época que foram pioneiras a colocar pedaços de metal e plástico a girar à volta da Terra, dependia de milhares e milhares de anos de evolução e de um instinto apurado para seguir o seu rumo e cumprir o seu pacato ciclo de vida na Terra. Um dia nesse Verão quente de 1957, enquanto dormia debaixo de uma qualquer árvore grande para se proteger do Sol, foi capturada por uns indivíduos bem vestidos que emitiam muito rápido sons que ela não compreendia, tentou fugir, o instinto dizia-lhe para não confiar e fugir, mas já era tarde, poucos instantes depois de sentir algo afiado prefurar-lhe a carne de uma pata traseira, adormeceu.
Acordou com os trambolhões que a carrinha que a transportava para Moscovo ia dando, não se conseguia mexer ainda, apenas ia tremendo de forma involuntária, não sabia onde estava, os barulhos que ouvia eram-lhe completamente estranhos, só via escuro à volta, estava profundamente assustada quando finalmente conseguiu soltar um latido enquanto se mijava de medo na carrinha. Ainda se mexia com dificuldade quando finalmente a carrinha parou e os dois homens que a tinham capturado abriram uma porta da carrinha e pegando-a pelo pescoço levaram-na até um minúsculo compartimento para onde a atiraram e fecharam, ela ia tentando reagir, mas ainda estava demasiado atordoada e apenas soltava uns ganidos de aflição.
Os que a tinham trazido para aquele compartimento foram-se embora enquanto ela tentava recompor-se e entender alguma coisa daquilo, conseguiu finalmente pôr-se de pé, estava aflita e ia batendo violentamente com a cabeça e as patas nas grades do compartimento enquanto gania de dor,começou depois a ouvir latidos aflitos de outros cães no corredor onde estava, estavam talvez em outros compartimentos, não os conseguia ver mas de certa forma aqueles sons familiares acalmaram-na, ainda tremia de medo mas acabou por se resignar, e aninhar-se no chão do compartimento, os outros cães também já tinham parado de ganir, acalmou-se e notou que precisava de beber água e comer qualquer coisa, reparou que no fundo do pequeno compartimento estava um recipiente com água e ao lado algo seco que ela nunca tinha visto mas que lhe cheirava a alimento,e por isso comeu, e apesar de ainda perdida e assustada acabou por adormecer.
Acordou passadas umas horas com o barulho de um portão a abrir, 3 homens avaliavam todos os cães do corredor e emitiam sons que ela continuava a não compreender, um dos homens abriu o compartimento mas não o suficiente para ela fugir, e aninhou-se junto das grades, olhava-a fixamente fazendo-a ficar paralisada de medo enquanto tentava ladrar, todos os outros cães ladravam agora, mas ele parecia não se importar,continuava a fixá-la com olhar, parecendo de certa forma satisfeito com o que via, acabou por agarrá-la e imobiliazá-la de forma rápida mas cuidadosa, e ela estava tão petrificada de medo que mal reagiu, apenas esperneava mas de nada lhe servia. Desta vez no entanto viu tudo a acontecer, foi levada novamente até uma carrinha, e de repente ouviu algo a fechar e tudo ficou escuro novamente,sentia que estava em andamento mas não sabia como, tentava desaparecer dali, mas nem sequer imaginava onde estava. O tempo ia passando, de vez enquanto sentia que a jaula onde se encontrava estava parada e ouvia sons estranhos mas que começavam a parecer-lhe comuns, talvez já tivessem passado dias de viagem, mas ela não sabia o que eram dias, apenas sabia que lhe doía tudo, que tremia de medo, e que tinha que fugir, era isso que o profundo desejo de vida lhe dizia.
Passados dois dias e meio de viagem chegaram a uma área longínqua e árida da União Soviética conhecida como Baikonur, ela pouco tinha dormido durante toda a viagem e o medo e o desconhecido continuavam a perturbá-la, a curiosidade nunca fôra o seu forte, apenas queria viver. Quando a tiraram de dentro da carrinha colocaram-na de imediato em uma pequena jaula transportável, e de dentro da jaula ia vendo agora centenas de homens que se riam dela enquanto tentava desesperada e desajeitadamente fugir de dentro da pequena jaula metálica em que era transportada e ia ganindo aflita. Encontrava-se dentro de um enorme espaço fechado,via luzes a apagar e a acender e imagens a mudar constantemente em ecrãs,todos lhe pareciam distantes a olhar para esses tais monitores, acabou por os perder de vista quando a colocaram numa pequena sala muito iluminada e também com monitores sempre a mudar com imagens que ela não entendia, e muitos fios, molas, metais e agulhas que a assustavam apesar de não saber nem onde estava nem o que queriam fazer com ela ou para que era tudo aquilo. Acabaram por colocá-la em cima de uma placa de metal e prender-lhe as patas e a cabeça lá, latia muito em desespero enquanto se mijava de medo em cima da placa, acabaram por limpar o mijo com qualquer coisa seca e iam-lhe ligando uns fios ao corpo, acabou por conseguir fixar uma palavra que os Homens na sala repetiam frequentemente, "Laika" e essa palavra que ela não sabia ser o seu nome, aliás ela nem sabia o que era um nome nem queria saber, assustava-a. Passado algum tempo acabou por desistir de tentar espernear e ladrar,parada não lhe doía nada agora, e os fios assustavam-na mas não a magoavam, e então ia apenas latindo consternada e em surdina, enquanto todos os homens na sala se pareciam concentrar num monitor com uns picos altos e baixos junto a ela, e no final, mesmo antes de finalmente lhe desapertarem a cabeça e as patas pareciam felizes e batiam com as mãos uma na outra.
Acabaram por a levar para um compartimento ainda mais pequeno do que qualquer daqueles porque tinha passado nos últimos dias, ladrou ao início ainda mas desta vez não teve resposta de outros cães, estava sozinha e acabou por aninhar-se apertada e calar-se, até para tremer lhe faltava espaço e nem conseguia levantar-se,tinha também uns fios ligados às patas e às costas,e à sua frente apenas dois canos de onde acabou por descobrir que vinha água e comida, e ela, mesmo aflita ia sempre comendo e bebendo para sobreviver, afinal era tudo o que ela queria, sobreviver.
O tempo ia passando, muito tempo, vários dias, iam passando pessoas perto dela e ela latia quando os via e abanava o rabo até, mas ignoravam-na agora, tirando um homem de óculos que de vez em quando se aproximava dela e lhe espetava algo doloroso no dorso enquanto ela gania imobilizada naquele espaço mínimo e com todo o corpo a doer-lhe.
Quando a dor já era quase insuportável acabaram por a tirar de lá, pareciam ansiosos e nervosos eles agora, Laika sentia isso, desta vez quando a tiraram do apertado compartimento onde estava já nem tentou fugir, acabaram por lhe enfiar algo branco e espesso pelo corpo, e por lhe colocarem um capacete de onde de vez em quando lhe parecia vir um gás estranho, não imaginava o que lhe estava a acontecer mas estava demasiado atordoada para reagir, pegaram nela, desta vez totalmente imobilizada pelo fato e levaram-na durante uns minutos ao colo até uma enorme e assustadora estrutura em bico, enquanto à sua volta centenas de homens continuavam a bater com as mãos e a gritar Laika, e outros tinham uma estranha lente com uma grande estrutura preta por traz à frente da cabeça, tudo isso a assustava, o instinto e o profundo desejo de viver continuavam a dizer-lhe para fugir, mas ela já não conseguia sequer tentar com dignidade.
Colocaram-na numa pequena cápsula mais ou menos do tamanho do mínusculo compartimento em que tinha estado, continuava com o fato grosso e estranho posto e por dentro deste voltaram a passar muitos fios para lhe ligar ao corpo, os que lhe faziam isso pareciam consternados, mas embora já sem ver continuava a ouvir gritos eufóricos com aquilo a que eles chamavam o seu nome. Acabaram por fechar a cápsula e sair esses tais homens consternados, o silêncio agora era total e o seu cansaço era já tanto que acabou por adormecer. Pouco depois um barulho tremendo acordo-a, num último esforço tentou levantar-se mas depressa embateu contra a cápsula pequena em que estava, e depois desse barulho uma força que não percebia fê-la sentir-se com dores lacinantes e colada ao chão da cápsula, o calor era imenso agora, quase que desejava o fim daquela existência ridícula embora o instinto e uma estranha sede de vida lhe dissessem para não desistir, aguentou umas horas ainda, a força já não a comprimia agora, mas o calor entrava-lhe pelo corpo derrentendo-a letamente e sufucando-a, o medo era imenso agora batia com a cabeça em cima da cápsula para tentar respirar, não imaginava onde estava, talvez outra vez na carrinha, talvez a caminho de casa, apenas a viver e por isso tinha o dever de aguentar, ela não sabia, o desespero, a falta de ar, o medo eram tão grandes que acabou por se sentir a explodir por dentro, e fechou uma última vez os olhos, dos Homens apenas palmas havia um brinquedo novo a girar no céu, e afinal ficou provado que já era possível um ser vivo sobreviver umas horas no espaço.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Antes de tudo

Choro,
Perdi-te, ainda antes de começar,
Mesmo junto de onde eu moro,
Fugiste, tornaste-te em ar?,

Não, apenas partiste,
E lá eu não posso chegar,
Nada disse, não podia ganhar,
Eu sabia, tu não, apenas me viste,

E assim o tempo parou, no meu alpendre,
Porque antes de naufragar, quis amar,
E antes de tudo estava o mar,

4 Estações

Outono
Já nada é como ontem, quase tudo é pior, e pior pode ser na mesma bom, ou suficiente, mas é pior. Luto, ou digo lutar, as árvores não perdem de livre vontade as folhas no Outono, mas perdem-nas, e ficam despidas, mas vivas. Consigo imaginar-me contigo amanhã, mas consigo imaginar-me sozinho também, gosto de ti, gosto muito de ti, e por isso te dou a verdade, ou pelo menos, a minha verdade, mais do que amar alguém, tu precisas de alguém para amar, alguém que tenha carne para abraçares e por quem te sacrificas e esperas igual, eu não, eu tenho encontrado a razão na mais profunda solidão, não me consigo prender a quem quer uma prisão. Lembro-me de te fazer surpresas, de contar os minutos para estar contigo, de te oferecer flores e de te escrever cartas desnecessárias, quando isso acaba, quase tudo acaba, menos o amor, se o houvesse. O amor, esse estado de profunda sensibilidade à vida e a tudo o nos rodeia, não desperta já quando estamos juntos, resta a melancolia, o efémero conforto do comodismo, o medo de mudar, e a saudade, essa eterna aliada do medo, porque a saudade, não tem medo.
Tudo o que vivemos será sempre nosso, só nosso, pelo menos enquanto houver memória, sabe bem a vida junto de ti, mas sinto que nunca houve amor, ou algo que se lhe assemelhe e realmente exista, e assim, por egoísmo, por mim, ou por ilusão, te digo, ou quis dizer, alguma coisa que entretanto esqueci, e por isso te foste embora, talvez nada mais importe agora.