domingo, 2 de janeiro de 2011

Cinema Paradiso

Era uma vês, há não muito tempo, um simples soldado que, no decorrer de uma festa da corte, na qual estavam as mais belas donzelas do reino, foi logo cair de amores pela própria filha do rei, que, diga-se, era a mais bonita de todas. Claro que, como em todas as histórias assim, ele declarou-se de imediato a ela, disse-lhe as coisas típicas que se costumam dizer nesses momentos, que estava apaixonado por ela, que ela era o ser mais belo que os seus olhos jamais viram, e que o olhar dela, o simples olhar de tão bonito e profundo lhe causava arrepios quando se poisava nele (bem, se o soldado pensava e sentia mesmo tudo isto na altura em que o disse, isso será analisado daqui a pouco).

A princesa, do alto da sua sincera beleza e presumida importância, disse-lhe que se ele gostava mesmo dela, deveria passar as próximas 100 noites na rua, perto do castelo onde ela vivia, e num local de onde ela o pudesse ver sempre da janela de seu quarto, para saber se ele cumpria realmente a longa espera. E que se ele cumprisse os 100 dias de espera, então aí ela seria sua para sempre. O soldado claro, ficou em êxtase com a possibilidade de assim poder conquistar o coração da sua amada princesa e começou nessa mesma noite a longa espera sentando-se num pequeno banco que trouxera de casa.

Claro que a primeira coisa que ele pensou, logo nessa primeira noite, logo nos primeiros 5 minutos foi que a bela princesa também se sentia loucamente atraída por ele, e que nessa mesma noite iria através de um qualquer estratagema, talvez através de uma espectacular fuga pela pequena janela, pendurando-se nos lençóis que previamente atara à cama para ir descendo e depois saltar caindo directamente nos seus braços, ou simplesmente descendo as escadas e abrindo a porta, iria ter com ele e ambos se amariam loucamente nessa mesma noite. Mas, ela não veio, acendeu uma luz no quarto ainda a noite não ia muito adiantada, pareceu-lhe a ele ver o vulto dela à janela por uns instantes, vulto esse que logo desapareceu, e nada mais se passou nessa noite, nada mais tirando a forte chuva que poucas tréguas lhe deu nessa noite, e que o deixou de tal forma encharcado que ele julgou ter apanhado duas pneumonias na mesma noite, e um pássaro cagou-lhe em cima, que isto quem diz que os pássaros dormem a noite toda é porque nunca passou uma noite na rua à espera de uma princesa. O dia acabou por nascer, acaba por nascer sempre independentemente das pneumonias, e ele foi-se embora.

As noites foram passando, e tudo continuava na mesma, houve uma em que a princesa abriu mesmo a janela do quarto (não chovia nessa noite), e lhe pareceu a ele que ela olhava lá do alto, fixamente para ele por uns instantes, parecia até que gostava dele, mas passado uns instantes saiu, fechou a janela e a luz apagou-se, houve outra noite em que acendeu por duas vezes uma luz no quarto, e por duas vezes pareceu ao soldado ver o seu vulto, e outra noite ainda em que os pássaros lhe cagaram 3 vezes em cima. Há medida que as noites iam passando os sentimentos do soldado pela princesa iam-se alterando, ou, em abono de maior verdade aparecendo, de facto quando ele disse naquela primeira vez que estava apaixonado por ela e tudo o mais, era a atracção física, as hormonas, e a estupidez precoce a falar, mas a solidão das noites, a chuva, o frio, a ânsia, a luz que de vez em quando se acendia, o vulto que por vezes aparecia, a distância, que de ser fisicamente tão insignificante e pequena, se tornava insuportável por ele não a conseguir quebrar, tudo isso fazia com que de certa e muito estranha forma o soldado começasse a gostar mesmo dela, por se fazer difícil, por ser difícil, porque só é difícil quem gosta mesmo de nós, assim pensava o soldado, porque se o irresistível e a paradoxa beleza da vida fossem fáceis, haveria bem mais pessoas felizes ou iludidas pelo menos.

Chegara agora a noite 50, e normalmente a partir deste “marco” seria mais fácil de suportar a espera, pois metade já estava, agora era uma contagem decrescente até poder ter nos seus braços a princesa por quem se apaixonara no chuva, solidão e ânsia das noites longas daquele reino, talvez um dia lhe contasse isso, que foi a espera, e não o baile da corte que fez com que ele soubesse que gostava mesmo dela, talvez não. Bem mas acontece, que depois das noites de temporal, chegou o frio, um frio tão intenso que fazia com que as mãos do soldado estivessem completamente geladas, e agora ele não tinha ninguém para as aquecer, o frio era tanto que parecia até congelar a tal contagem decrescente, e a luz no quarto da princesa que há medida que as noites frias iam persistindo lhe parecia acender-se cada vez menos vezes, de vez em quando julgava ainda que era nessa noite, fosse a 91 ou a 93 que a princesa ia sair do castelo e ir ter com ele, até podia nem lhe dizer uma palavra, mas pelo menos ficaria bem perto dele por uns instantes, aquecendo-lhe as mãos, e a alma, se a houver, mas logo o tremendo frio o trazia de volta para a realidade. Quanto ao tal esquema do lençol pendurado na janela, isso convencia-se ele, é um esquema parvo e louco, e uma princesa não é parva nem louca.

A penúltima noite chegou, e com ela tudo mudou, o soldado depois de tamanha espera e maior angústia, de tanta chuva, de tanto frio, e de mais gelo ainda, percebeu, ou julgou saber, que se ela não viesse nessa penúltima noite ter com ele, mandar-lhe um pequeno bilhete pela janela, ou simplesmente pendurar-se no lençol, e cair-lhe nos braços, seria porque a espera de 5 minutos ou 100 noites, teria sido em vão, porque nunca fora realmente correspondido, nem nos primeiros 5 minutos, nem durante 5 minutos das 99 noites que esperou, e nessa penúltima noite ela até acabou por acender duas vezes uma luz no quarto, uma das vezes ele até viu o vulto dela bem junto do vidro da janela, mas depois logo depois a luz se apagou, essa noite passou e o soldado, reunindo as forças e orgulho que lhe restavam, pegou no banco onde tinha esperado 99 noites, e desapareceu com o nascer do dia e esconder da noite, e assim, com uma forte pneumonia mas sem uma bronquite crónica deixou o reino da princesa para nunca mais voltar.

O que será que teria acontecido se o soldado tivesse esperado aquela última noite, ele não sabe, a princesa talvez, mas as pneumonias curam-se.