sábado, 25 de abril de 2009

Meio cheio, meio vazio

O copo estava meio cheio, havia copos partidos por toda a parte, rastos de vómito pela casa, alguns já dormiam a monte pelo chão com pedaços de vómito colados à roupa, outros cambaleavam e iam bebendo de copos fétidos que iam apanhando enquanto “snifavam” umas linhas, davam murros na mesa e riam alto, Francisco bebeu-o de um trago e saiu, enquanto descia as escadas as suas lembranças iam sendo preenchidas por um vulto, que ia ganhando forma a cada degrau que ultrapassava auxiliado pelo corrimão, ia-se recordando que passara grande parte da noite a olhar para ela, recordava agora o vestido preto que usava, que por ser de cavas lhe fazia notar os braços extremamente magros e sobressair o contorno dos ombros, continuava a deambular pelos degraus que jurava serem tortos e movediços, podia agora olhá-la nos olhos pretos enquanto descia, um principio de sobriedade tentava voltar a preencher-lhe as veias e permitia-lhe arrepiar-se com a beleza dela, com os cabelos pretos que contrastavam com a tez clara das suas costas despidas, com o sorriso que ela lhe fazia, que por não ser sorriso o prendia, e o olhar discreto e delicado dela, que de estranha e insuspeita forma o sufocava.
Ela sobressaia naquele emaranhado desfocado de gente que revirava os olhos, ia-se recordando da garrafa de água na mão dela, do desprezo dela para com tudo aquilo, ia conjecturando o que estaria ela a fazer naquele sitio agora 3 pisos acima dele, sentia-se derrotado por não ter tido coragem de falar com ela (é triste trocar aqueles olhares, bater a porta e sair), e profundamente estúpido por se ter embebedado para ganhar coragem, agora hesitava em voltar até lá cima, voltaria a beber provavelmente, não sabia o que dizer, sabia que calado não podia estar, tinha medo, talvez nem fizesse nada, talvez fizesse má figura, talvez já a tivesse feito, passou pelo último degrau, bateu a porta e saiu.
Seguiu até ao carro, era um velho “chaço” vermelho já um pouco amolgado que ainda andava, e que por isso servia, sintonizou ao acaso “Society” no rádio enquanto se dirigia para casa, ainda tinha a visão turva e os reflexos condicionados e lentos, e pensava nela, não notava a passagem das fracções que fazem o relógio girar, estava abstraído da vida, ia passando pelas luzes e avenidas da cidade, todas uniformes, todas iguais, sentia-se derrotado, insignificante e estúpido e carregava fundo no acelerador para tentar afastar a frustração, pensava, e pensava-o talvez apenas porque tinha sido “derrotado” o que preenchia o coração de uma mulher, desse ser misterioso e com uma incrível capacidade para carregar segredos e angústias, esse ser que quando ama ou secreta forma deseja, mantém segredo até ser “conquistada”, e quando não ama, nem deseja, mas apenas lhe apetece, ou porque a solidão a assusta, ou porque ele deseja e ama a outra, então aí conquista, quando não com palavras e olhares, com o próprio corpo, mas não será tudo a mesma coisa? De súbito é encadeado por uma forte luz branca que se aproxima dele, que já está demasiado perto para ele poder agir, continua a aproximar-se, cegando-o agora, ele mantém-se imóvel, uma estranha lucidez percorre-o agora, apercebe-se que não é ali que era suposto estar, mas é ali que pertence agora, e que por isso o que vai acontecer é inevitável, depois só uma dor lancinante.
Acordou sobressaltado umas horas mais tarde, o carro tinha a frente parcialmente destruída, mas por ter embatido num muro de um condomínio da cidade, aquela luz branca, aquela estranha lucidez, aquelas certezas, dor e fim como um bêbado estúpido e miserável, tudo isso uma amarga visão do que podia ter sido. A sua têmpora esquerda sangrava abundantemente, e o sangue ainda quente escorria-lhe pela face emaranhando-se com a sua barba desalinhada, e pingando de uma forma quase musical sobre os estofos gastos do carro, ele sem hesitações pegou num pequeno farrapo de pano que tinha no porta-luvas e humedecendo-o com a própria saliva, passou-o pela face deixando-a limpa do sangue que começava a secar, passou depois o pedaço de pano pela têmpora, que já tinha cessado de sangrar, e limpou-a também, de forma metódica e determinada, girou por algumas vezes a chave na ignição, até o motor pegar a custo, fez marcha atrás do muro do condomínio, deixando-o apenas com umas marcas de tinta vermelha e um farolim despedaçado, passou uma última vez o pano por um resto de sangue que sobrava no volante, atirou-o para a berma da estrada, e seguiu .
Dirigia-se de novo para a festa, ia pelo percurso exactamente inverso ao que tinha feito umas horas atrás, como se estivesse a recuar no tempo, mudando-o, uma misteriosa determinação corria-lhe no sangue, um resquício de melancolia perseguia-o, mas o que seria da determinação sem alguma hesitação, melancolia, e incerteza, a condição humana é demasiado precária para que poça haver determinação sem haver medo, decidira falar com ela, de alguma forma sabia que ela ainda estaria lá, talvez porque quando estamos debaixo de água só os sonhos nos permitem continuar a respirar, mas ele sabia-o. Chegou à porta do prédio, não sabia bem que horas eram, apenas o silêncio o cercava, e o silêncio pode ser cruel quando a solidão nos assusta, carregou insistentemente na campainha do 3ºesquerdo, o prédio era velho e degradado, havia seringas no chão e algumas pequenas poças de vómito já seco, parcialmente cobertas pelas folhas em decomposição de algumas árvores de ar antigo e imponente que choraram as folhas ficando amargas e frias, e assim viviam para cobrir vómito, vazio e seringas.
Francisco não parava de pressionar a campainha, pressiono-a até ao seu polegar começar a ficar em ferida, por causa da agressividade que impunha naquele botão cansado e áspero, depois, não por duvidar que fosse aquela a campainha correcta, mas porque a ânsia, a espera, o silêncio e a solidão aliadas aquele cheiro a náusea o levavam a próximo do desespero, e essa proximidade faz doer, passou a tocar em todas as campainhas, a jogar-se contra a porta e por fim, a sentar-se e a esperar.
No início da espera, a cega excitação de entrar de novo naquele apartamento, e com ar triunfante, qual príncipe corajoso e encantado, sequestrar o coração de sua bela donzela, proferindo juras de amor, se não com os lábios e com o olhar, hipotecando o corpo, essa excitação impedia-o de reparar nos pormenores, mas a espera foi-se alongando levando-o por momentos a fechar os olhos, mas mal os fechou da escuridão surgiu a tal rapariga bela de cabelos pretos, mas o olhar gelado e mais que gelado vazio e mais que isso um grito agudo vindo aquele fragmento de imagens, fez com que abrisse de imediato os olhos completamente desperto, e até meio assustado, mas aquela poderosa e solitária determinação, faziam-no esquecer o medo. Abstraia-se agora, seguindo com o olhar uma das poucas folhas que ainda restava numa daquelas árvores ásperas e velhas, no seu solitário e inevitável percurso, descia lentamente condicionada por uma brisa, e ia girando no ar, amarrotando-se, acabou por cair em cima de uma daquelas poças de vómito, e junto com tantas outras ia-a cobrindo aos poucos, já não estava sozinha agora.
De súbito um estalido na porta e esta rangeu. Levantou-se de sobressalto, empurrou a porta e entrou, a escuridão do hall do prédio e ainda aquele súbito ranger da porta sem que nenhuma voz ecoasse do lado de lá da campainha, faziam-no tremer. Tacteou a parede até encontrar um interruptor e pressionou-o. A luz era trémula, mas permitiu-lhe reparar num pequeno espelho que se encontrava no lado oposto ao do interruptor, olhou de forma desdenhada e apressada a sua imagem ao espelho, e com um pouco de saliva humedeceu os dedos e apagou uma mancha de sangue seco que lhe persistia no lado esquerdo da testa, depois começou a subir as escadas com uma estranha “mecanização” em cada passo .
Enquanto passava pelos degraus o perturbador silêncio mantinha-se, ouvindo apenas o ecoar de cada um dos seus passos até chegar ao apartamento da festa, estranhamente a porta estava entreaberta, deixando escapar um resquício de luz, do lado de dentro do apartamento não vinha contudo qualquer som, isso intrigava-o mas não o detinha, bateu cauteloso por algumas vezes com os nós da mão na porta de madeira já gasta, não obtendo qualquer resposta, e acabou por entrar hesitante, sabia que algo não estava certo, mas ele precisava saber o que se passava, e mais que isso, precisava de a ver, a princípio uma luz forte cegou-o e um cheiro fétido percorreu-lhe as entranhas, notou que a sala guardava os vidros dos copos partidos, o vómito no chão concorria com um amontoado de garrafas vazias, mas agora o silêncio só era quebrado pelo vinho que vertia das mesas e cadeiras e pingava no chão, e restava apenas um corpo naquela sala, jazia imóvel num canto da sala e tinha a cara ensanguentada, Francisco aproximava-se dele por instinto, mas antes de estar suficientemente próximo para o poder identificar escutou o que lhe pareceu ser um choro abafado vindo de um dos quartos que mantinha a porta fechada.
Esqueceu assim por momentos aquele corpo moribundo e dirigiu-se para a porta de onde lhe parecia vir aquele misterioso choro, chegou até junto à porta e por momentos deteve-se junto desta fixando-se numa frase escrita a letra trémula, dizia “o medo nunca vence, mas sobrevive” desdenhou-a mais por causa da letra trémula e fraca com que estava escrita mas ficou-lhe cravada na memória, voltou a escutar aquele choro melancólico que era como uma súplica em voz baixa, e bateu na porta. Escutou um “entre” de uma voz feminina, a voz era um pouco fraca mas firme e decidida, e suave, tão suave.., rodou a medo a maçaneta da porta e entrou.
Ela chorava abraçada a outra rapariga de longos cabelos louros e com uns olhos azuis que sobressaiam, e ele que devia estar surpreendido por vê-la, mas não estava, estava apenas a seguir um sinuoso caminho que pelo menos uma vez todos seguimos, o quarto era pequeno e mal iluminado, e no chão do quarto além de um enorme emaranhado de roupa e garrafas vazias, estava um pedaço de vidro partido com sangue ainda vivo que escorria lentamente para o chão, nas paredes havia ainda posters do James Dean, de Paris e de Los Angels, mas estavam já todos meio velhos e até rasgados, elas estavam as duas sentadas no chão com as costas apoiadas numa frágil cama de solteiro desfeita, fitaram-no com uma espécie de desespero sem nada dizer, o vestido preto dela tinha agora um rasgo entre o seu ombro esquerdo e o umbigo e a sua pele nessa zona estava rubra e quase ensanguentada, e tinha também algumas gotas de sangue espalhadas pelo vestido cumprimentou-as com um “boa-noite” trémulo, era a primeira vez que falava para ela, elas responderam-lhe em uníssono mas praticamente sem mover os lábios.
Acabaram por falar um pouco, sempre conversa de circunstância, uma conversa quase metódica e demasiado superficial, até para uma normal conversa de circunstância, notou algum desejo no olhar dela e agora uma frieza distante no olhar da outra, quando lhe perguntaram o que fazia no apartamento agora, respondeu com naturalidade que tinha perdido a carteira e pensou que pudesse ter ficado por lá, estavam agora os 3 naquele pequeno quarto de luz trémula, a outra disse com uma certeza melancólica na voz que o apartamento era dela, e que antes de limpar tudo aquilo queria dormir um pouco, não lhe disseram nunca contudo porque choravam quando ele entrou, também não falaram nada sobre aquele moribundo ensanguentado na sala, e ele também nada perguntou. Estavam agora de pé junto à porta do quarto, ele olhava-a fixamente num momento de silêncio que quase doía, ela despediu-se da outra com uma carícia na face e disse ao Francisco para saírem os dois para a outra poder descansar, agarrou-o pelo braço, mas ele antes de se voltar para sair cruzou por uma última vez o olhar com a outra, era distante e melancólico, preenchido de inevitabilidade, abandonaram o quarto e fecharam a porta, deixando-a, atravessaram rapidamente a sala moribunda, e saíram,

- Não procuras-te a carteira…(disse suavemente, provocando-o)

- Encontrei-te

- Eu esperei que voltasses

- Porque esperaste?

- Porque voltaste?

- Sabia que ainda estarias lá

- E agora estamos os dois aqui.

- Sabes, eu tentei falar contigo na festa, mas de certa forma tive medo,

- Sim eu sei, eu também quis ir falar contigo, mas quando me aproximei na altura, pareceste-me tão bêbado e perdido, que me afastei

- (Corou de vergonha dele próprio), Estava mesmo, e tudo o que queria era conseguir dizer-te qualquer coisa, qualquer palavra ou monossílabo, embebedei-me para o tentar, mas continuava a sentir que tudo o que dissesse naquele momento soaria a patético.
-Sabes, talvez soasse mesmo a patético, e, se não tivéssemos trocado aqueles olhares, provavelmente ignoraria a idiotice que dissesses, mas eu estava a olhar para ti, e uma mulher não faz nada por acaso.

- (Sussurrou-lhe ao ouvido que a beleza dela era avassaladora e lhe fazia tremer todos os sentidos) Apetece-me dizer-te algo do género de, a tua beleza é avassaladora e faz todos os meus sentidos tremerem, mas como agora, neste momento, soaria ridículo e pretensioso dizer-to, digo-te apenas que me apetece ir até junto ao mar, ia saber-me bem ouvir o desfazer final, sistemático e desesperado das ondas na areia e nas rochas, e vai saber-me melhor se vieres comigo.

- (Sussurrou-lhe que sim, de uma forma que o fez ruborizar novamente) Proposta ousada essa, vinda de um desconhecido,

Entraram no carro dele e seguiram. A frente do carro continuava parcialmente destruída por causa do acidente que tivera umas horas atrás, mas ela não fez nenhuma pergunta quanto a isso, iam falando de trivialidades, cinema, música, literatura, e de forma ora mágica ora perturbadora, os gostos dela praticamente coincidiam com os dele, sempre que Francisco lhe perguntava algo de mais pessoal ou real, ela desviava a conversa e apenas fitava-o, ele sentia que algo estava errado, notava-o no olhar dela, ela sabia algo mais, mas ele estava com ela, e isso, bastava.
Reparou numa grande placa electrónica, que dizia em letras alaranjadas “estrada interrompida devido a acidente com derrame de óleo ” mas os poucos carros que circulavam não pareciam abrandar e ele não via qualquer resquício de um acidente, comentou com ela que apenas sorriu de uma forma quase circunstancial. Chegaram finalmente até junto do mar, as ondas embatiam com força contra a falésia numa sintonia quase musical, sempre com a mesma cega determinação, sempre com o mesmo inevitável fim, desaparecendo com estrondo, e serenando, como se ainda hoje lutassem em vão para alterar o final da primeira onda que bateu contra terra. Dizem que se pode ouvir a voz do mar em momentos assim, tantas são as verdades, segredos, e destinos fatídicos que o mar carrega, e por isso todas as ondas, apesar de condenadas ao mesmo destino, são diferentes, como se cada uma carregasse uma vida, e como se a costa fosse sempre o fim, mas naquela noite o som de todas parecia melódico e igual, como se o mar deixasse de alguma vez ter tido voz e passasse a ter apenas destino.
Agora, ainda noite, olhavam-se em silêncio, a pele clara dela estava arrepiada, talvez por causa do frio húmido que entrava no carro e mantinha-se ruborizada no local daquele estranho rasgo no seu vestido, o olhar dela apesar de distante, bem mais distante e até apagado do que durante a festa até, parecia desejar o corpo dele, parecia querê-lo, parecia até destinada a tê-lo. Na noite não surge amor, não numa noite apenas, talvez atracção, medo de solidão, pretexto para sexo, e ambos o pareciam saber, sabemo-lo todos. Ele fitou o relógio do carro, marcava 3:30 da manhã, mais ou menos a hora a que saíra da festa, e o ponteiro dos minutos tremelicava hesitante para trás e para a frente sem parecer decidir para onde se mover, tinha-se estragado aquando do acidente, ele pensava no sentido, na improbabilidade, na simplicidade, e até na felicidade de tudo aquilo, por uma vez a vida era objectiva, sincera, determinada, e por isso mais fácil, por uma vez o desejo e o sonho correspondiam inteiramente às expectativas, e por uma vez não se sentia nervoso, com um estranho aperto no coração, ou até mesmo palerma, perante um ser tão belo como ela,

- Ainda não me disseste o teu nome,

- Ainda não me o perguntaste,

- Pergunto-te agora,

- Senão te o disser, será como se nunca tivesse existido, amanha podes ir embora, e nada importará, será como se nunca tivesse acontecido, ninguém existe sem um nome.

-Eu não quero ir amanha, embebedei-me e fui “perdoado” e agora encontrei-te de novo.

-Amanhã, quando tiver passado a noite, logo te direi como me chamo, depois vou beijar-te, vou mordiscar-te os nós dos dedos, vou fazer-te cócegas até, mas isso se estiveres aqui amanhã,

-Estarei.
Nesse instante sentiu alguém bater com força no vidro do lado do condutor, ele ficou hirto e sem saber bem o que fazer acabou por abrir o vidro manualmente, enquanto ela parecia não se preocupar muito com a situação e continuava apenas a olhá-lo, quando acabou de abrir o vidro reparou que se tratava de um senhor um pouco gordo até, assim de meia-idade e com um olhar que até se podia dizer que guardava algum ódio, se não estivesse tão profundamente infeliz,
-Boa noite,
-Boa noite, o que deseja?
- Que você desapareça daqui,
- Este sítio é público, e você não é polícia, vá mas é chatear alguém como você.
- Destruir é demasiado fácil, (e sem mais palavras, mantendo sempre aquele inalterável olhar, acabou por virar costas e se perder na escuridão)

Francisco fechou rapidamente o vidro e fazendo um esforço por ignorar aquele momento anterior e porque ela também parecia não querer saber, beijou-a sem acrescentar mais palavras, beijaram-se demoradamente, experimentavam-se, aguardando, ela mordiscou-lhe os lábios com força, fazendo-o arrepiar-se em silêncio, sugava-lhe o sangue que escorria, envolvendo-o ainda quente na própria saliva, e receber depois naqueles beijos o sangue que ela lhe roubara e moldara, excitava-o. Despiram-se em silêncio, ele massajava-lhe a pele rubra na zona do rasgo no vestido, e que mesmo assim continuava tão pura e doce, e depois massajava, beijava e desejava cada centímetro de carne dela, colocou-lhe a mão entre as pernas e com os dedos começou a fazer com que ela gemesse e o arranhasse até, senão de prazer ainda, pelo menos de ânsia de prazer, ela começou a mordiscar-lhe o ombro e ele pressionando-a contra as costas do banco do carro que rangia já gasto, misturando-se todos os sons com as ondas constantes do mar, e olhando-a nos olhos que transbordavam de um desejo fatídico que não sabia esperar, começou a penetrá-la e agora os gemidos de ambos lutavam por se sobrepor às ondas do mar.
Saber que dependia dele continuar ali quando o sol nascesse, vê-la a bocejar desajeitada quando o sol a acordasse, ver esse mesmo sol a iluminar a pele clara de contorno magro e definido dela, e imaginar os sorrisos cúmplices que trocariam quando fossem acordados pelo sol, tudo isso alegrava-o, e fazia-o de uma certa forma misteriosa, ainda não bem explicada por causa dos neurotransmissores, carne, sentimento, expectativa, desejo e cócegas que envolve, saber que “estaria ali quando ela acordasse”.Mas ainda era noite e mandava o desejo imediato, amavam-se, emaranhados por um desespero inevitável, o desejo consciente, de carne e de sexo concretizava-se, tudo aquilo soava como um puzzle confuso, faltava organizá-lo e rezar para que não houvesse peças rasgadas, mas o prazer era tanto agora, ambos gritavam de um prazer forte, imediato, louco, e diria até que imprescindível à vida que só a carne dá.
Abriu tremulamente os olhos, não lhe parecia ter chegado a dormir, ao seu lado, ela dormia ainda, era bela enquanto dormia, parecia sempre tão bela, reparou que o volante que tinha limpo depois do acidente estava ainda manchado de sangue seco, e olhando-se pelo retrovisor do carro viu que continuava com aquela mancha de sangue no lado esquerdo da testa, percorreu-o um arrepio de lucidez, e doía tanto, sentia um amargo na boca, por aquele último trago, por todos aqueles tragos, por ter tido medo, por ter desistido, uma pequena folha de papel embateu contra o pára brisas do carro, tinha um “V.” tingido de vermelho no meio, e um pequeno smile em uma das bordas, uma dor lancinante que lhe cobria a cabeça e o pescoço e que agora não parava ou diminuía, percorria-o, e sentiu-se a abrir os olhos que já julgava abertos, as dores impediam-no de sentir o próprio corpo, e turvavam-lhe a própria visão, apercebia-se apenas que estava imobilizado numa cama de hospital, aquilo não podia estar a acontecer, tentava mexer-se e nada acontecia, não sentia nada, começou a gritar, a gritar e a gemer não de prazer como à pouco, mas de verdade e angustia agora, mas saberá alguém a exacta diferença?
O quarto era pequeno, e a cama dele era a única naquele quarto, iluminado por uma forte luz branca, e por uma pequena janela entreaberta que lhe permitia ver, distante o mundo exterior, e apenas ouvia o apito monocórdico e constantemente intervalado de uma qualquer máquina, queria sair dali, sair por aquela pequena janela, e continuar a viver, procurá-la e encontrá-la agora que finalmente era dia, lembrava-se daquela luz branca antes do impacto, de um grito sufocado de uma voz que não era a sua, mas tudo lhe parecia distorcido e imperceptível e até insignificante. Corriam-lhe lágrimas soltas pelo rosto agora, lágrimas de dor, medo, raiva, revolta, não importava agora porque o sal de ambas é o mesmo, um médico acabou por entrar naquele pequeno quarto com cheiro a desinfectante e a morte, e ele, no mais pisado e recalcado de seus pensamentos, já sabia o diagnóstico que o médico lhe diria, como se já há muito o tivesse sabido, o sal das lágrimas secava-lhe agora os lábios, enquanto o médico de ar ainda jovem, vivo, despreocupado e passageiro, o encarava,

- Fico feliz por ver que já acordou, como se sente?

- Como estou?

- Está agora a começar a recuperar, sobreviveu a um acidente grave, teve sorte

- Como estou?

- Foi projectado do carro durante o acidente, e com a violência do impacto ficou com duas vértebras cervicais desfeitas, talvez melhore com fisioterapia

- Diga-me, responda-me com verdade por favor, esqueça a merda dos termos médicos agora, e diga-me, vou conseguir sequer voltar a andar um dia?

- Não

- Bem, agora era a altura em que eu por vazio e raiva partia tudo à minha volta, mas isso se me pudesse mexer, obrigado, deixe-me sozinho agora por favor,

- Os seus pais querem vê-lo, também, estão lá em baixo à espera.

- Deixe-me sozinho, e não os traga aqui, diga-lhes que estou bem e que os adoro, mas agora não, não quero que me vejam assim, com repulsa, com raiva de mim, a ser um nada que se mija e borra nas calças, por favor faça isso.

- Tudo bem, mas devo avisá-lo que também terá que prestar declarações à polícia

- Porquê?

- No momento do acidente você estava embriagado, e ao seu lado ia uma rapariga, que morreu carbonizada, ficou presa no carro enquanto ele ardia, é tudo o que lhe posso dizer

- Eu ia sozinho no meu carro, disso tenho a certeza

- Terá oportunidade de explicar isso mais detalhadamente quando prestar declarações

- Espere, diga-me só o nome dela,

- Vera.

- Era loira de olhos azuis cor de mar ela,

- Parece recordar-se afinal.

- Sim, talvez eu seja a merda de um monstro que se embebeda premeditadamente para
destruir vidas, e no final sorri por se lembrar, mas agora, agora deixe-me sozinho.

- Tudo bem Francisco, continuação de um bom dia, e se precisar de alguma coisa uma enfermeira virá de imediato

Estava de novo sozinho, para sempre sozinho naquilo que era agora, mas não conseguia deixar de pensar nela, naquela noite inacabada, sabia quem era a outra agora, talvez sempre o tivesse sabido, mas pensava nela, nos cabelos pretos dela, nos ombros definidos e joelhos torneados, na beleza dela, na garrafa de água em sua mão, nos olhares trocados, e pensava em tudo isso não por estar apaixonado por ela, nem tão pouco por acreditar realmente que um dia se chegassem a amar, não por ela ser mais especial ou mais bela que todas as outras, mas apenas porque fora a última vez em que viver valia a pena, a última vez em que sentiu um desejo puro, despreocupado, sincero e recíproco, e diabos o levem se não é isso que todos queremos.
Olhava estático para a janela pequena e odiosa que lhe mostrava o dia e a vida lá fora, chorava lágrimas que já não sentia nem provava, já não tinha medo, mas agora mijava-se e borrava-se nas calças e a sua carne de não se mexer, apodrecia, e ele esperava, para sempre, e rezava para o sempre ser breve, esperaria, não pela morte, pela morte esperamos todos, mas por ela, e triste é aquele que espera por uma miragem que não volta. Talvez o destino sejamos nós a fazê-lo, talvez tudo já esteja escrito, talvez ninguém se importe mesmo, mas a vida é sempre injusta para quem ama, curta para quem apenas sonhas, e uma paisagem apenas, para quem vive de medo.

4 comentários:

ANNUNCIATA disse...

Magnifico! É a única coisa que consigo escrever sem estragar tudo o que escreveste.

justme disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
justme disse...

Não tive oportunidade de te dizer mas está muito bem escrito. Um dia destes tens de me explicar quem era a outra. :P
Boa viagem

Anônimo disse...

Ontem, enganei-me... em vez de deixar o comentário aqui, neste cantinho "meio cheio, meio vazio", perdio-o noutro sítio. Bem, o que queria dizer é que gosto da forma como "agarras" as palavras e...
celestina.
:)