segunda-feira, 16 de maio de 2011

Ensaio sobre o amor

As longas cortinas que tapavam o palco estavam entreabertas, eram de tom ora azul ora quase preto, e por traz delas, dois corpos de sorriso no rosto, e olhar apaixonado, ambos com um punhal cravado no mesmo exacto local do ventre que lhes rasgava a roupa, a vida e a lógica, jaziam inertes, era o corpo dele e o dela. Há frente do imponente palco onde os seus corpos eram personagens principais, apenas cadeiras, belas, confortáveis, e até ortopédicas, mas vazias, tantas que do palco não se via onde acabavam, quanto ao resto do teatro, a talha de ouro bem trabalhada disfarçava, o que os olhos nunca puderam ver.
Ele questionava quase tudo, questionava a vida, para que estava ele aqui afinal de contas, se os outros, se tudo o resto era mesmo real, ou apenas informação fantasiosa e manipulada por algo superior que ele desconhecia. O próprio belo ele questionava, tantas coisas tão belas, tudo é belo à sua maneira equacionava ele, seja o bater de asas ordenado dos pássaros que passam em mágica coordenação, seja o voo solitário de um só pássaro que parece lá do alto saber todos os segredos que realmente importam. Seja um rosto com um sorriso jovem, aberto e perfeita dentição, seja um sorriso de velho, que até já deveria estar gasto, e mesmo assim permanece aberto, com muitos dentes em falta e rugas entranhadas, mas belo. Seja um ar ora miserável e profundamente infeliz, ora enigmático e pensativo, e na mesma profundamente infeliz. E por mais que se tentasse e aprofundasse estas discussões com ele, não havia forma de lhe mudar tal perspectiva, porque ele até no que de mais díspar existe do belo, a fealdade, até nisso ele via beleza. Via-a nos feios, gordos, incapacitados, velhos acabados e restantes miseráveis, que mesmo assim sorriam, ou os casais, que bonitos ou feios, inteligentes ou não, após algum tempo de convivência em comum, vêm que o outro é tantas vezes ridículo, cheira mal, tem cólicas, fica doente, espirra e tem comichão de forma que nada tem de eloquente ou cativante, e mesmo assim continuam juntos e dizem querer continuar, e é o conjunto que é belo, não cada uma das fracções. Assim como belas não são as entranhas do pássaro, mas o pássaro inteiro que voa sobre nós, e aliás, acabei por vos mentir à pouco, ele não questionava o belo em si, mas sim o propósito do belo.
Apenas não questionava a matemática, achava-a supérflua e ao mesmo tempo complexa, e por isso desnecessária, ou melhor, não se metia com ela porque acreditava não a poder vencer, mas não se preocupava muito com isso. Que é a matemática senão a resposta objectiva, complexa e superficial, para tudo aquilo que é subjectivo, simples e profundo, inquiria ele, só não lhe retirava o “estatuto” de bela, porque equiparava-a às estrelas numa noite limpa de tudo, até de lua, brilhantes, tão brilhantes, que pareciam chamar por quem as realmente percebesse, ou até mesmo quisesse, apenas esse “alguém” nunca seria ele, seria ela.
Ela era aquilo a que vulgarmente, de forma simplista, e porque não dizê-lo, injusta, se chama de mulher objectiva e da ciência. Adorava a matemática e a física, não questionava tudo, mas arranjava explicações lógicas e normalmente demonstradas por cálculos, para tudo o que se propunha, custava-lhe até imaginar diga-se, que pudesse ser de outra forma. Os números, a matéria, os átomos, as equações e inequações, as cisões e as fusões, pareciam ser a única forma de tudo ter algum sentido, valor, e credibilidade. Claro que também sonhava, mas até aí incluía a matemática e a matéria como co-factores essenciais, olhava para as estrelas em certas noites e imaginava-se a viajar até lá, calculava mentalmente o tempo que demoraria para dezenas de distâncias e velocidades diferentes, e meticulosamente pensava como poderia ocupar o tempo de forma conveniente, num espaço restrito, artificial e sem gravidade, ou como seria se viajasse à velocidade da luz, quão mais devagar passaria proporcionalmente o tempo a tal velocidade, o que aconteceria com tudo o que importa, a matéria. Olhava para as flores e o que primeiro lhe ocorria era a sequência de fibonacci, espreitava os beija-flor e ia para casa a pensar que combinação de potencialidades permitia que as suas asas batessem daquela forma avassaladora, ou sobre a real aleatoriedade do caótico movimento dos electrões, tudo o que era caótico e por natureza incontrolável, assustava-a.
Ambos, da sua modesta forma, queriam sempre saber mais, aprofundar mais, escrever e calcular mais, perceber ou definir o propósito de tudo, e assim, como de tantas outras formas, os outros tentam fazer, conquistar o mundo, até que se conheceram.

Todos se moviam por qualquer coisa, fuga às responsabilidades, vontade de conquistar corpos alheios, imperativo de mal dizer, contrariados e por isso arrastando os pés e desprezando a alma, ou pelo álcool e afins tragédias. Pouco espaço sobrava no recinto apertado e decorado com faixas, flores de papel, luzes intermitentes e contínuas de cores diversas. O calor era intenso, mesmo à noite, e por isso a cada passo de dança ou simples andar, os corpos suavam, e a roupa, por norma já pouca, colava-se.

-Hey, não fujas com o chapéu.
-Se não fugir posso ficar com ele?
-Não, fica-me melhor a mim.
-Depende da perspectiva, mas fico com ele 5 minutos e pago-te um copo pode ser?
-Claro que não, não me vais pagar um copo, isso é machismo que eu dispenso, e tentativa de me impressionar descarada, e já agora, não te afastes sem me devolver o chapéu, mais de 10 passos é fugir.
- Não, não é machismo, machismo seria, e mesmo assim poderia ser outra coisa, que a loucura e insensatez são culpadas de quase tudo, querer pagar-te um copo sem receber nada, que não fosse a tua companhia, em troca. Mas receberia o chapéu por 5 minutos, e sinceramente não sei onde poderia aqui alugar um chapéu destes por menos que um copo. Quanto a te querer impressionar ou agradar, não me parece que tirar um chapéu e propor um copo em troca fosse a melhor, ou tão pouco uma mediana forma, de agradar a alguém, se realmente te quisesse impressionar teria apenas tocado no teu chapéu quando à pouco ainda estavas de costas e distraída, e quando sentisses o toque e enfim te virasses, diria impressionado que já que te agradava andar com um chapéu padrão tigresa numa noite destas, devias pelo menos colocá-lo um pouco mais para cima na cabeça, para que não te tapasse, a ti, a visão de um mundo contagiado por sentidos, e a quem te vê, o verde mais belo, mais forte, mais decidido, que eu alguma vez vi num olhar. Depois, quando estivesses, talvez surpreendida, talvez quase assustada pela surpresa, ou talvez apenas a decidir que expressão tentar aparentar para esconder o que ainda não era altura para sequer pensar, dir-te-ia para olhares para o céu, para a lua cheia que brilha alta hoje, e perguntar-te-ia se sabias que numa noite destas as luzes da festa e da cidade escondem um céu quase azul, mesmo à noite, culpa da própria lua, rezando baixinho para que dissesses que não. Não por desejar que não o soubesses realmente, mas apenas porque isso facilitaria o pretexto para te convidar para por um pedaço de tempo sairmos da festa e irmos os dois juntos até à areia da praia agora finalmente deserta do outro lado da ponte, ver o azul de um luar assim. Quanto aos 10 passos não te preocupes, apenas darei passos na tua direcção, pelo menos enquanto não te devolver o chapéu.
- E porque não o fizeste, porque não disseste nada disso?
- Porque realmente nunca te quis agradar, ou porque sou tímido, e um idiota.
- É suposto eu adivinhar?
- É suposto queres descobrir.

Muito encasacados, em cima de um muro já velho onde musgo e pequenas flores sem dono proliferavam, o Sol punha-se sobre o mar neste dia gelado, e mesmo assim o laranja era intenso e de certa forma e lá longe, até quente.

-Fecha os olhos, imagina que o mundo é só nosso por um instante, donos, senhores, e todos poderosos.
-Hum, para quê?
-Apenas fecha-os, confia em mim – Beijou-lhe os lábios
Passou cerca de 1 minuto
-Ainda não posso abri-los?
-Quase, quase.
Ouviu-se algo a rebentar
-Mordeu-lhe a bochecha esquerda desta vez – Um feliz ano novo,
-Mas, mas, este ano não íamos poder passar o ano juntos por causa do teu turno de daqui a pouco – Lágrimas, tantas lágrimas iam-lhe correndo pelo rosto, eram, caro leitor, se assim se podem chamar, as lágrimas mais felizes do mundo.
Pequenos flocos de neve iam caindo sobre eles, apesar de na linha do horizonte sobre o mar se ver ainda o ténue avermelhado da despedida do Sol de Inverno.
-Bem sei que ainda faltam 6 horas agora, e nunca te prometi nada de eterno, nada para sempre, nem tu a mim, bem sei também que esta data em si, para mim, nada significa, e para ti arrisco dizer que ainda menos ou igual, mas celebremos nós o ano novo antecipado de um calendário cristão, ou apenas mais uma hora, que agora passou, não podia deixar de o passar contigo hoje.
-Passou a mão pelos olhos ainda em lágrimas, lágrimas não pela surpresa em si, nem tão pouco pela data ou pretexto em si, mas sim por começar a perceber, por um convicto e mágico saber que lhe percorria as entranhas, que seria para sempre, um para sempre sem promessas ou ilusões, apenas para sempre – Sabes, já nada é como antes de te conhecer, porque antes não acreditava que isto, exactamente isto que me percorre agora, e por isso lhe chamo isto, existisse mesmo, bem sabes que nunca acreditei em almas gémeas e afins conjugações, e que não foi fácil ao inicio, éramos por dentro tão diferentes, agora somo-lo apenas por fora, e sim, esquece qualquer promessa, tudo o que não prometemos sabemos, o que prometemos, inventamos, e eu sei.
-Almas gémeas, só champagne e chocolate, foi o que trouxe para nós agora.
-Primeiro o champagne ou o chocolate?,


Chovia torrencialmente naquela tarde de fim de Outono, muitas árvores estavam já despidas no parque, e o manto de folhas algumas alaranjadas outras quase cor de sangue ia flutuando apoiado numa camada de água com a altura de 2 dedos. Eles estavam abrigados num pequeno alpendre no meio do parque, estavam apenas de roupa de interior com a pele arrepiada e molhada, e iam ouvindo a Tiro ao Álvaro num gira-discos que os acompanhava.

- Ela tremia de frio e os dentes batiam por vezes uns nos outros enquanto falava – Antes, os números quânticos e os átomos eram o que me preenchia de facto, precisava de perceber, de investigar, de demonstrar, era a única forma de mostrar que estava realmente viva, agora finalmente percebo Camões “Amor, é ter com quem nos mata lealdade”, a ânsia de vida facilmente engana quem não ama.
- O nariz dele pingava e também ele tremia de frio – Eu questionava tudo, agora tenho tudo, mesmo o amor, que sempre questionei, e ainda hoje não percebo, eu tenho, por uma vez tenho-o, e que felizardo que sou em tê-lo uma vez.
- Atchim,

Era fim de Verão e estava um calor infernal e abafado, mesmo agora, depois do Sol se ter já posto no horizonte, tinham passado ambos a tarde numa encosta abrigados do Sol pelas muitas árvores que quase se sobrepunham e abrigados do mundo por 2 horas de caminhada pela falésia, os corpos nus de tez morena repousavam agora misturados com milhares de margaridas de 21 pétalas e algumas borboletas azuis.

-O Sol desapareceu,e só agora os aviões deixam um rasto laranja no céu, daqui a pouco será noite e apenas teremos as luzes variáveis, a mesma lua e as mesmas estrelas de sempre, depois antes do Sol nascer, outros aviões irão deixar um rasto laranja no céu, e por fim nascerá o Sol, branco. Assim se passaria o dia visto daqui, e depois, com o final do dia tudo se repetiria, só a vida é transitória e efémera.
- E por isso talvez apenas o amor seja eterno, o amor, rouba a vida a troco de eternidade, o próprio céu, o próprio rasto dos aviões só ficam da cor do Sol quando o Sol se põe.

Mais ou menos neste momento fecharam-se as cortinas que mostravam os seus corpos às cadeiras vazias, alguém lá estivesse a assistir, que nunca mais os veria.

2 comentários:

Rosa Negra disse...

Gostei imenso deste Ensaio!Particularmente do parágrafo final e das expressões "...e é o conjunto que é belo, não cada uma das fracções..."; "que seria para sempre, um para sempre sem promessas ou ilusões, apenas para sempre..."
Os meus parabéns : )

Lipincot Surley disse...

gostei :) parabéns