quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Outono

A velha descobriu que ainda estava viva no Outono, o Verão, como sempre, fora terrível, tudo sempre igual lá fora, os corpos sempre tão despidos, e por vezes bonitos, as almas essas, sempre tão escondidas.

Estava já num profundo desespero mumificante, quando por fim a vida começou a florescer. Começou com um pôr do Sol, sim, isso mesmo, um singelo e cíclico pôr do Sol, que pela primeira vez em tanto tempo, e aqui é de referir que, a velha, comportando-se como todos os velhos se comportam, dizia até que era a primeira vez que acontecia com tanta intensidade, impunha ao céu que o levava uma tonalidade arroxeada. Quer dizer, havia quem o olhasse e visse azul, outros viam, cor de rosa, e havia até quem jurasse que era cor de tijolo, era de qualquer cor, porque era de todas as cores, e era de todas as cores, porque lá laranja não era, e de tantas vezes ter sido laranja, de um belo e intenso laranja, ai quantos beijos deu a velha enquanto o laranja se punha no mar, o laranja deixou de ser cor.

Lentamente começaram a surgir os sobretudos e os guarda chuva, as terríveis molhas ocasionais, que nos gelam até aos ossos e nos fazem desejar chegar a casa, tomar um banho quente e embrulhar-mo-nos numa manta, ou então, embrulhar-mo-nos logo directamente numa manta. Claro que a velha já devia ter juízo e não sentir saudades destas molhas que sem umas cápsulas de vitamina C bem que podiam causar uma constipação. Chegaram aquelas misteriosas rajadas de vento que nos causam arrepios quando estamos na rua, e um estranho prazer quando estamos no aconchego dentro de uma qualquer casa, ou ainda, uma estranha nostalgia se estivermos sozinhos dentro dessa tal, qualquer casa. Religiosamente vieram também os assadores de castanhas na rua, agasalhados por roupas velhas e rotas, mas que magicamente parecem, ainda assim, quentes, com um ar sempre consternado, e envelhecido, julgo até que já nascem com pelo menos meia idade, e com as mãos e o próprio rosto, tão cheias de cinza, tão perto de serem a própria cinza, que nos lembro dolorosa, ou nostalgicamente, e aqui deveríamos poder escolher desejava a velha, aquilo para que todos caminhamos.

Foi assim que num dia de Outono, ontem mesmo, para tentar criar alguma nostalgia no caro leitor, a velha, agora felicíssima por ainda por aqui andar em mais um Outono, enquanto passeava, lentamente, que isto reumatismo, poupa a alma, mas corrói os ossos, por uma pequena floresta, em que as árvores travavam contra o vento e contra o tempo uma digna batalha por cada folha que surpreendentemente apresentava as mesmas cores de um pôr do Sol Outonal. Mas que apesar, de digna, iam perdendo implacavelmente uma por uma, roubando assim aos pobres dos pássaros mais um subtil refúgio da milionésima gota de chuva que, e falo só pelo dia de ontem, lhes acertaria em cheio na testa. Bem a verdade é que foi assim, que a velha voou, como não voava desde o Outono passado, e não voou nem para muito longe, nem para muito perto, mas voou, que isto os pássaros nascem na primavera, no verão ficam pelo ninho, mas é no Outono que apreendem a voar.

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