sábado, 9 de julho de 2011

A troca

Acordei, e ao voltar o pescoço fixei o olhar na mulher ao meu lado, a pele, ainda carente de uma vitalidade adormecida, apresentava-se estranhamente pálida, contrastando com o vermelho vivo dos lençóis e com o resto de batom que ainda permanecia nos lábios, e lutava por se manter à tona. A persiana da janela estava entreaberta, e assim, os primeiros raios de Sol, que ela dividia sem travar, iluminavam-nos os corpos nus em milhares de pequenos rectângulos de luz. Sabia que estava perante a maior beleza do mundo, e não sentia nada, não desejava nada nem tão pouco pensava nisso, e com tanto nada já me estava a atrasar. Levantei-me maquinalmente, tendo especial cuidado para pouco fazer balouçar o colchão ao sair, e mesmo os lençóis vermelhos pouco se sentiram, não queria que acordasse, não tinha nada de lucrativo para lhe dizer.
No banho, a água quente que vinha de cima e me massajava monocordicamente as costas permitia-me continuar sem sentir nada, e talvez a culpe em excesso, mas impedia-me mesmo de pensar no absurdo daquela manhã, fechei os olhos, e apenas vi folhas de papel, tabelas de Excel, e fotos, todo o género de fotos, todo o género, desde que fossem de papel. Ai sim, uma primeira pontada de desejo matinal surgiu, folhas preenchidas com belos relatórios , alguns em Ariel 12, outros em Times New Roman, queria analisá-los a todos, louvá-los depois, e as tabelas, milhares de números, combinações de números, queria tocar naqueles números, jantar fora com eles e depois fazer serão, senão à lua cheia, pelo menos iluminados por uma boa lâmpada de 50 watts. E juntando algumas fotos, que mais pode um homem sonhar, até com elas posso andar de mão dada, basta levar tudo dentro de uma pasta.
Fechei a torneira, e ínfimo intervalo de tempo que passou até me começar a secar, senti as gotículas de água que não me tinham largado, e que já estavam apenas mornas, a percorrer-me o corpo, como se um labirinto onde se queriam perder se tratasse, fazendo-me cócegas, ainda bem que acabou depressa. Vesti-me, perfumei-me, olhei-me ao espelho, agradei-lhe, e ajeitei um pouco o nó apertado da gravata.
Olhei para o relógio, e como, se tudo corresse mal, ia demorar 45 minutos a chegar até chegar ao trabalho (que a partir de agora, e nestes últimos 2 derradeiros parágrafos será tratado por Ele) e já só faltavam 50 minutos para o Acontecimento, já não tinha tempo para tomar o pequeno-almoço, comia qualquer coisa depois, e por isso ainda me sobravam agora, que o tempo não espera, 4 minutos, passei pelo quarto mais uma vez, ela continuava a dormir profundamente, mordiscando inconscientemente o lábio, respirava como se fosse suposto eu entender, não sei se foi só hoje, se vou voltar a amá-la amanhã, agora a minha alma é para Ele, transtorna-me agora, mas sei que nunca vou ter coragem de lhe dizer, nunca vou ter coragem de dizer a ninguém.
Estou junto dela, faltam 2 minutos para ter que ir, nem uma ponta de desejo, sinto que temos um contrato de trabalho a unir-nos, quero contar-lhe, dizer-lhe que não a amo, que me fartei do belo, da vida, e dos iguais a mim, ela acorda, os olhos esverdeados dela ainda com as pálpebras hesitantes poisam-se nos meus, aproximo-me mais uns centímetros e beijo-a, olho para o relógio de braçadeira de prata, está na hora de ir ter com Ele, ela finge sorrir, eu retribuo, não há palavras, viro costas, e saio de mão dada com a pasta, feliz, vou ter com o meu grande amor e por isso não me penso.

Um comentário:

Rosa Negra disse...

Gostei imenso desta "troca" absolutamente bem visivel no "de mão dada com a pasta"...esta expressão traduz na plenitude a preferencia da personagem masculina pelo trabalho...são opções : )