terça-feira, 16 de agosto de 2011

Meu querido mês de Agosto

Esta história não começa em Agosto, não acaba, mas nela há quem viva,

De um Portugal abandonado à escuridão da agora bem-amada, ditadura, “escapa” um dia o Manuel, era ainda novo, bom rapaz, lia com dificuldade, e sonhava ter dinheiro para um dia construir uma boa casa na aldeia, e, o seu sonho mais secreto, ser o primeiro a ter um carro lá na aldeia. Assim, despediu-se naquela manhã chuvosa de princípio de Inverno, em que as gotas de chuva apesar de gordas e efectivas, pareciam nem molhar, de tudo o que conhecia, de tudo o que era, um abraço forte à mãe, já viúva, e um beijo, sem grande chama, que toda a aldeia observava, a Olívia, a sua ainda mais nova noiva. E levando na mala apenas umas broas e uns rissóis caseiros e 2 tabletes de chocolate, partiu rumo à fortuna anunciada.

Não sabia uma única palavra de Francês quando chegou, desenrascava-se com uma linguagem gestual que roçava o primata, e nada conseguia comprar com os 2,5 escudos que tinha no bolso, acabou por já noite dentro da sua primeira noite em Paris, depois de 10 noites a dormir na rua ou em palheiros, conseguir uma pensão para passar a noite, tremia de frio, um frio que nunca conhecera em 21 anos de vida, não sentia as pontas dos dedos nus e arroxeados, mas ia ficar na pensão numa espécie de fiado. Disse orgulhosamente a sua primeira palavra em Françês, um Merci numa voz grossa e desajeitada em que o i era imperceptível, e subiu as escadas, gastas ora pelo uso, ora pela solidão, de par em par. O quarto era fraco, minúsculo e pobre, custa-me até acreditar que houvesse quartos tão tristes em Paris, as baratas pequenas faziam uma fila ordenada enquanto percorriam o chão, o colchão não tinha tão pouco dois dedos de espessura, mas Manuel sentia-se uma divindade, nunca tinha dormido num colchão, e estava agora a descobrir, na casa de banho do corredor da pensão, que das torneiras também sai água quente, enquanto tomava um demorado banho e uma contínua camada de escuro ia trocando o seu corpo franzino pelo branco amarelado da cabine, dir-se-ia, se agora fosse, que o pobre do rapaz tinha perdido dois tons de bronzeado.

Para trás, deixara a sua mãe, Dona Alberta, na mesma vida de sempre, entregue ao trabalho nas terras, a cuidar das galinhas e das cabras, ao rádio lá de casa, à televisão pequena do café, aos serões de maldizer, às rezas decoradas e à costura ocasional, à nostalgia envenenada pela inveja, e ao desejo. Às saudades que tinha de uma companhia que fosse do sangue dela, que resultasse do seu suor, respondia com a secreta certeza de que o filho ia voltar, e ia voltar inteiro, ao contrário dos filhos de duas vizinhas e amigas de serão, uma tinha perdido o filho na guerra, a outra tinha recebido de volta o filho estropiado.

Num final de tarde, em que, para esquecer as mãos cheias de ferida, algumas quase em sangue, e a pele que ardia de queimada, depois de um dia de trabalho ainda mais terrível que o de ontem, bebia uma cerveja numa taberna lá dos subúrbios, em que as cadeiras cheiravam a velho quando não a podre, o chão, fora em tempos à muito idos, claro, quase branco, e as telhas de zinco preto, algumas já rachadas e quase todas com as pontas partidas, absorviam e impunham a quem debaixo delas se sentava ainda mais calor do que aquele que se fazia sentir naquele dia estranhamente quente de principio de verão em Paris.

Quando uma francesa mais ou menos da sua idade, talvez 1 ou 2 anos mais nova, entrou com ar pedante e mais que pedante, poderoso, naquela taberna onde só estavam serventes de pedreiro e alguns os trabalhadores da vidreira, e pedindo também ela uma cerveja, fora sentar-se á beira do Manuel, que diga-se, era senão o mais bem-parecido, pelo menos o mais jovem dos que lá se encontravam e o único que ainda não tinha sequer um pronuncio daquela desprezível barriga que caracteriza tantos homens, e que qualquer mulher, ou pelo menos qualquer jovem mulher, define como nojenta. Trocaram algumas palavras, apesar do Francês de Manuel ser ainda demasiado arcaico para qualquer tentativa digna de articular 3 palavras seguidas, o momentâneo desejo de ambos por carne, a beleza, não estonteante ou especialmente inata, mas provocadora dela, bem como a motivação secreta dela para ter entrado num final de tarde daqueles numa taberna daquelas, rapidamente tornaram as palavras faladas dispensáveis, na verdade ainda só tinham falado o suficiente para descobrir que nenhum dos dois era mudo, o que poderia dar jeito daqui a pouco, quando subiram até ao minúsculo quarto de Manuel, que continuava ainda a morar naquela triste pensão.

Tiveram quase 2 horas ora de olhares e anseios, ora de preliminares, ora de sexo de cadência intermitente, incluindo sexo oral, algo que diga-se ele nem sabia que existia, nunca experimentaria nos futuros 45 anos de casamento com Olívia, mas tinha gostado bastante. No final, ambos nus e suados, estavam abraçados, no chão sujo e quente, ignorando as baratas que lhes passavam por cima dos dedos dos pés, que a cama teria sido demasiado pequena para tudo aquilo, quando ela, entrelaçando os seus dedos finos, nos dedos fortes e meio calejados, meio em ferida dele, lhe levantou o braço que a aninhava a ele e se levantou, sem palavras, sem esforço, se vestiu. E quando, depois de um último esgar se preparava para sair do quarto, ele, ainda nu e sem se levantar, perguntou-lhe o nome, ela sorrindo, e pela primeira vez corando um pouco disse, sem se virar completamente para ele que se chamava Sophie, e avançou determinada, contudo mantendo o ar pedante, para a porta, mas não sei antes ouvir um convicto “Mápélle Manuél”.

No dia seguinte, e também no a seguir a esse, Manuel pensou em de alguma forma procurá-la, repetir tudo aquilo, talvez até quem sabe romper o namoro com a Olívia, mas depois caía em si e ocorria-lhe que na aldeia nunca seria olhado da mesma forma se o fizesse, que era para ganhar dinheiro, tanto quanto conseguisse que ele lá estava naquela cidade maluca, e que além disso a Olívia chegava já para a semana, e ainda por cima a Sophie bebia cerveja, o que claro iria deixar de beber se estivesse com ele, mas já por si era indecente, e também lhe tinha desagradado que ela já não fosse virgem quando subiu com ele até ao quarto, pelo que acabou por desistir de pensar em procurá-la, apesar do desejo, de uma esperança que nem a ele próprio conseguia explicar, e de ela ter bem menos pelos que a Olívia.

Chegaram à aldeia no carro de frente comprida e conforto inexistente, branco por fora, e com uma napa preta muito fina que lutava para imitar o cabedal, que o Manuel tinha estreado já o Verão passado lá na aldeia, era a 4 vez em outros tantos anos que lá voltavam, e desta vez eram 3 que voltavam, ele, Olívia, e a sua pequena filha, Stephanie, a dona Alberta ostentava uma enorme felicidade, e não parava de sorrir por estes dias, embora tão imutável sorriso se devesse também à dentadura nova que Manuel lhe tinha oferecido, e que todas as vizinhas teriam agora que contemplar e invejar, e se possível comentarem até um pouco tal assunto umas com as outras.

Os dias da dona Alberta passavam agora numa azáfama, entre contemplar e agarrar a neta, fazer as refeições para todos, contar, nunca apenas uma vez, todas as novidades da aldeia, nunca apenas as objectivamente verdadeiras, tratar das matanças na capoeira, fazer 2 ou 3 passeios com o filho, a neta e a nora, até à cidade, outras tantas idas à praia, para a qual, a custo e depois de muita insistência do Manuel lá comprou um fato-de-banho, embora claro, algo XXL, que lhe cobria as pernas até à altura dos joelhos, enquanto o da Olívia ficava dois ou 3 dedos acima da altura dos joelhos ( ambos eram bem maiores que o vestido de Sophie naquele final de tarde, tal lembrança fê-lo primeiro sentir ardor, e depois, esboçar um sorriso vazio) , algo que, claro está, lá para meados de Setembro já seria trazido a tema de conversa com as vizinhas, e a ida e preparação da grande festa da Aldeia, na qual já não participava à 7 anos, pois só agora acabava o tempo de luto “digno” de uma esposa para com o seu marido.

No final do mês, despediu-se com abraços fortes, muitos beijos, e a sincera convicção de que tinha sido o melhor Agosto em muitos anos (apesar de notar que o filho estava a ficar meio marreco, algo que claro nunca comentaria com ninguém), quando ajudou a fechar o porta bagagens do carro, completamente cheio de coisas da aldeia, cheio da própria aldeia, e instantes depois começou a ouvir o motor a trabalhar, e o carro se começou a afastar lentamente, mas sem sinais de ir engatar a marcha atrás, deixando apenas pó a quem ficava para trás, ficou quase instantaneamente com os olhos em lágrimas, algumas lutando mesmo para correr rosto abaixo e se perderem nas já tantas e profundas rugas, mas fez um esforço monumental para as suster a todas, passar dissimuladamente a mão pelos olhos e acenar com o sorriso novo espetado no rosto para o carro que partia e que ela não tinha o direito de travar, não era mais a vida dela, essa ia entrar em estado vegetativo mais 11 meses em que tudo o que faria seria para que voltasse a nada faltar no próximo Agosto e na próxima bagageira do carro, afinal alguém tem que alimentar as galinhas e as cabras, e as couves não nascem do nada e as camisolas de malha não se fazem sozinhas, além de que aquela vizinha, sim essa mesmo, a mãe do estropiado, não parava de a mirar de longe, e não tinha o direito de a ver chorar.

Na verdade a vida de todos entrava em estado vegetativo durante 11 meses, as feridas nas mãos de Manuel só saravam em Agosto, e os calos nos dedos, e dores nos ombros e costas, essas ficavam sempre, Olívia, bem como Manuel trabalhava 6 dias por semana, trabalhava numa fábrica de latas de conserva, e fazia ora um turno e meio, ora 2 turnos de cada vez para conseguir ganhar mais uns francos, e mesmo assim chegava a casa quase sempre antes de Manuel, a tempo de ainda cozinhar para eles, sempre com as carnes mais baratas e, enquanto as houvesse, as batatas da aldeia, ao domingo não trabalhavam, mas raramente saíam de casa, tudo implicava gastar dinheiro, gastar francos, francos que eles tinham, tinham bastantes até, mas que queriam converter em escudos, para quando voltassem de vez para a aldeia de ambos, passavam meses a fio, fechados entre os trabalhos estupidificantes e aquele prédio velho, frio e quase podre, dos subúrbios de Paris, chegaram a passar anos, aliás a Olívia apenas passados 3 anos em Paris é que viu a Torre-Eiffel, e ainda agora não começara a fazer o buço, a vida de todos, menos a de Stephanie,

- Je t’aime,

- Pour toujours?,

- Non, je ne vivrai pas éternellement.

Stephanie tinha 18 anos, e era o 18 mês de Agosto em que regressava à aldeia, tinha-se despedido de Claude, anteotem ao final da tarde, e a verdade é que já queria voltar para junto dele, não por as saudades, ao fim de 1 dia e meio terem crescido tanto assim, mas porque este mês na aldeia adivinhava-se ainda mais insuportável que o do Verão passado, chegara esta manhã e já tinha ouvido 3 velhas coscuvilheiras, hipócritas e quase sanguinárias, uma das quais era a mãe do estropiado da guerra colonial a comentarem a pouca vergonha que eram a saia extremamente curta que usava hoje, o que, segundo as palavras das velhas “é para mostrar aos homens que os quer ser fornicada por todos este verão, e mais houvesse, mais marchavam”, ou julgavam que ela era surda como elas, ou queriam mesmo que ouvisse, para a tentarem domesticar, e enquanto isso dois jovens da aldeia, um dos quais também emigrante, olhavam-lhe para as pernas e para o rabo, ostentando uma pose e caretas faciais dignas dos melhores primatas, a eles não os ouvia, também não precisava, percebia através de infelizes e fugazes olhares trocados com aqueles marsupiais que se deleitavam a imaginar-se a agarrar-lhe as pernas com força enquanto a tratavam como um cão trata uma cadela, olhares que só podiam agradar quem não sabia merecer bem melhor. E diga-se que, nem as velhas, nem aqueles dois gorilas, sabiam, nem iam nunca saber, que aquela saia constava entre as mais compridas que tinha, e mais que isso, o tormento que foi para convencer os pais a usar roupas daquelas, valendo-lhe apenas o facto de que em Paris quase todas as jovens se vestiam assim, o que tocava principalmente na sensibilidade do Manuel, já bastava ele, e a Olívia serem todos os anos e durante 11 meses em cada ano, serem olhados como diferentes, e até mesmo como inferiores, e mais que isso sentirem-se menores e viverem numa pequena, isolada e desprezada “bolha” de um mundo que não pára, bastavam eles, passara toda a vida adulta por constantes provações, sacrifícios e humilhações, apenas disfarçadas em Agosto, e apenas pedia uma coisa em troca, a felicidade de Sthephanie.

Apesar de ainda nova, ela sabia-o bem, tão bem que por vezes, nos belos e primaveris finais de tarde em Paris, com os pés dentro da água fria, mas mesmo assim apetecível do Senna e os olhos postos no Mundo, ficava com os olhos humedecidos por lágrimas ao pensar no sacrifício que duas gerações perdidas e trágicas tinham feito por ela, a sua avó (que em toda a sua vida nunca saíra por uma vez que fosse do distrito), passava todo o ano a preparar Agosto, a desejar Agosto, a recordar Agostos passados, para evitar recordar as saudades do que nunca tivera, o marido, que para sua desgraça e vergonha morrera há já tantos anos, quando completamente bêbado caíra a um poço, batia-lhe sempre que bebia demais e tresandava a álcool, ou seja, todos os dias, uma vez, pouco depois do nascimento de Manuel, dera-lhe socos tão estúpidos e violentos na barriga que ela nunca mais pudera ter filhos de novo, e claro que ele culpava-a a ela por não poder ter mais filhos e dava-lhe ainda mais porrada, até mesmo na cara de feições outrora belas da agora Dona Alberta, e toda a aldeia sabia, nomeadamente as agora colegas de maldizer e amigas de serão, mas ninguém fazia nada, pelo que uma potencialmente bela, viajada, culta e até amada mulher, para sempre viveu encarcerada no corpo da Dona Alberta, tendo até acabado, não logo, mas agora, depois de tanto tempo de cárcere, por perder o desejo de ser amada por um homem, o desejo de sexo, pode até dizer-se que tudo isso apodreceu nela, claro que acabou por tornar-se numa coscuvilheira amargurada, invejosa e sempre triste, mas que mais pode uma mulher fazer quando a proíbem de viver, senão de alguma forma, sobreviver.

Os seus pais tinham-se tornado escravos em plena segunda metade do século XX, a diferença em relação aos séculos passados, é que agora os escravos tinham férias, chamavam-se Agosto, Manuel tornava-se cada dia mais marreco por causa do trabalho, quase na mesma proporção que Olívia se tornava mais gorda, as suas mãos outrora sempre em ferida estavam agora completamente calejadas e até deformadas, à já 3 anos que não entravam no centro de Paris, nunca tinham feito um passeio de barco pelo Senna ou comido um croissant com chocolate quente nas divinais confeitarias Parisienses, aliás a última vez que estiveram no centro de Paris foi para verem a filha actuar numa peça da escola, não faziam sexo à 8 anos, o descuido de Olívia com a aparência era catastrófico, pelo que pelo menos nisso o excesso de trabalho e cansaço de Manuel servia como um bom escape, aliás ela não tinha sexo à 8 anos, Manuel tinha ido à não muitos anos a uma prostituta em Paris, e assim, apesar de ter que pagar um extra, voltou finalmente a ter sexo oral, mas nunca mais lá voltou, porque tinha mesmo que poupar, os estudos de Stephanie estavam cada vez mais caros, e também tinham que poupar para um dia conseguirem acabar de construir a quase mansão que já tinham começado a construir lá na aldeia. E, entristeci-a mais ainda, porque isso fora uma atitude dela, todos os estratagemas que arranjara para que os seus pais não voltassem a assistir a uma peça lá na escola, depois da vergonha da última vez, nem conhecessem nunca os pais dos seus amigos da escola em que estivera, que este ano era o seu primeiro ano na faculdade. Nunca lhes contaria claro, para o bem deles, algo que ela tinha feito para tratar do bem dela.

Ela que ao final de 2 gerações de tragédias, aproveitava a fantástica capacidade de amar, passeara de mão dada ora pelas mais belas, ora pelas mais estreitas, ora por ambas ao mesmo tempo ruas de Paris, fizera amor em plenas águas do Senna depois de uma noite de Verão passada no único recanto de Paris de onde à noite se conseguem ver as estrelas, apreciar a melhor arte que se fizera, existia, e fazia em Paris, se esconder dos seguranças, junto com Claude, num dos centenas de quartos mágicos de Versalhes, de receber cartas de amor, e das escrever também, de estudar numa das melhores faculdades, frequentar os melhores clubes e tertúlias, e mesmo assim, ou e apenas assim amar loucamente. Por isso em Agosto fazia um esforço para aguentar a distância da vida, e um enorme esforço para que os seus pais e a avó não notassem que desprezava quase tudo naquela aldeia, assim, mesmo sem uma dentadura nova, parecia a avó, sempre de sorriso colado no rosto, devia-lhes isso, devia-lhes muito mais, nunca lhes pagaria tais sacrifícios, e por vezes temia isso, temia que um dia lhe pedissem mais do que ela queria, ou podia alguma vez dar.

Não imaginara nunca ela, que Manuel passaria de bom grado mais 10 vezes por toda uma vida de provações e humilhações, só para, como agora, sem ela saber, a contemplar, superior a ele, superior a todos os outros na aldeia.

Um comentário:

Catarina Luna disse...

É exactamente isso que eu tento transmitir.