terça-feira, 23 de agosto de 2011

O assassino

“A vida é uma tragédia quando vista de perto e uma comédia quando vista de longe”

Segurava com suavidade entre os dedos bem cuidados e bastante peludos, um copo do melhor vinho, ia-o bebendo sem pressas, degustando cada novo aroma a chocolate preto e frutos silvestres, permitindo ao álcool percorrer-lhe as entranhas, enquanto fumava um delicioso charuto e as rugas ainda viçosas que tinha em redor dos lábios, se vincavam e afundavam na pele, de cada vez que puxava o fumo para dentro de si. O calor que fazia naquela sala, juntamente com as circunstâncias, tornava-se insuportável, pelo que acabou por desabotoar o botão da camisa que lhe comprimia dolorosamente o pescoço, e soltar um pouco a gravata, acabando ainda por desabotoar também o último botão da camisa que lhe comprimia o abdómen protuberante, demasiado cheio pela refeição farta de há pouco. Em que se deliciara com carnes tenras, e novas que sabia terem testemunhado apenas crueldade, que tinham sido chicoteadas, pontapeadas, obrigadas a comer quase até rebentarem, até atrofiarem até não se mexerem, e até mesmo paradas entrarem no espaço das outras, de tanto crescerem, em tão pouco e nojento espaço. Tudo isso dava-lhe um certo sentimento de “topo da cadeia alimentar” que sempre lhe agradara bastante, arrotou baixinho.

Depois de subir num luxuoso elevador de chão de granito preto até ao segundo piso, fornicava agora uma qualquer loira, nova, muito nova, duvido que tivesse 18 anos, era bonita, não de uma beleza atroz, nem sequer bela tão pouco, não poderia sê-lo, não assim. Mas era tenra, firme, e bem esculpida, e sorria para ele, enquanto ele entrava nela, e o seu abdómen, proeminente e peludo, lhe raspava nas virilhas impecavelmente brancas, e ele, sabendo que ela fingia o sorriso, e fingia o prazer, tentava entrar com mais força, com violência, apenas para provocar dor, e buscar em tal dor o seu maior prazer, e notando que não chegava, que ela, estúpida, continuava a sorrir para ele, fingindo gostar, ou seja, sendo-lhe quase indiferente. Nesse momento apertava-lhe com a força de uma tenaz, a fina e imaculada pele que lhe rodeava a boca e os dentes, pressionando cada vez mais, enquanto ela recusava em queixar-se e parecia continuar impávida, e quando finalmente ela se queixava, implorava que ele parasse com aquilo, quando começavam a surgir manchas de sangue pisado por debaixo dos dedos dele que a amassavam, ele tirava mais duas ou três notas da carteira, e colocava-as lentamente, ao lado da cabeça dela, por cima da mesa onde a domava, e continuava a fazer o mesmo. Já sem a penetrar tão pouco, já exausto, gotas do seu suor arfante de suíno caíam por todo o corpo bonito dela, e até as suas faces teimavam em notar-se rosadas, apesar de a pele da cara, de barba impecavelmente feita, começar a ficar gasta e inexpressiva, apesar de tudo isso continuava, enquanto via as manchas de sangue pisado alastrarem por debaixo dos seus dedos ganhando uma tez cada vez mais arroxeada e definitiva, para que depois do sexo, depois de ele se ir, ela não o desprezasse, não o esquecesse, não fosse tomar um banho e ficasse tudo bem, mas para que ela o temesse, e preferencialmente até odiasse.

Seguiu directo para o seu jacto particular, para uma curta viajem até ao aeródromo já perto de sua casa, nestas tranquilas viagens, em que aproveitava sempre para consultar um resumo da principal actividade bolsista do dia, o que mais lhe agradava era o sentimento de plena convicção de que estava a gastar em farta abundância um dos vastos recursos naturais que irão fazer falta uma tremenda falta às tristes gerações que aí vêm, e de poluir ainda um pouco mais o planeta, apenas um pouco mais, mas imaginava deleitado, que se todos pensassem assim, e ele sentia secretamente que pensavam, os próximos a nascer nunca iriam poder respirar um ar sinceramente puro, ou mergulhar em águas límpidas e imaculadas como as que agora ainda lutam por resistir, e iriam por isso invejá-lo, desejar ser ele, e em outros dias até mesmo odiá-lo como a loira, nessa altura já velha e podre, o iria continuar secretamente a odiar, e por isso a passagem dele pelo Mundo não seria nunca indiferente, ou até mesmo passageira, e apesar de constantemente a tossir e a cuspir lagosta, por pôr demasiado na boca de cada vez, contemplava agora as estrelas de um céu estrelado, das quais estava agora 5 km mais perto do que todos os outros que o odiavam e odiariam.

Finalmente começou-se a despir, para se ir deitar na sua enorme cama de lençóis de fina seda e colchão, ortopédico, com comandos electrónicos vários, modo de massagens, e ajustável à fisionomia de cada corpo, que todos os dias o fazia orgulhar-se das terríveis dores que sentia nas costas e da escoliose que começava a desenvolver por passar todo o dia sentado e debruçado sobre gráficos e tabelas, só por saber que tantos miseráveis, de preferência pretos orfãos, dormiam em palheiros cheios de carraças ou no chão frio e imundo. E há medida que tirava cada peça de roupa, contemplava-a, tocava-a com suavidade, quase que amando-a, ou amando-a mesmo, caso esta tivesse a firme convicção de esta ter custado o equivalente a pelo menos um ano de trabalho de um qualquer explorado e humilhado, de preferência criança. Como o quarto era também ele enorme, e se encontrava sozinho esta noite, tais divagações funcionavam para ele como uma qualquer canção de embalar, especialmente agora, que já enroscado nos lençóis de seda começou a chover violentamente, o que lhe permitia imaginar com um profundo realismo, aqueles que morriam de sede, de sede da mesma água que lhe escorria agora pelas condutas da casa para depois ir saciar ervas daninha. Mais um suave arroto, evidenciando um estômago ainda demasiado farto de comida por que milhões de outros rastejariam, apenas para provar, e adormeceu.

Um comentário:

ANNUNCIATA disse...

Assassino da sua própria integridade e, principalmente, dele mesmo. Quando li, pensei nos milhares de pessoas iguais a esse que descreves magistralmente. ladrões de recursos, de outras vidas e de sonhos que dormem sem pesos na consciência, muito seguros e apaixonados por si.
Gostei.
Beijo