terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O herói e o desertor

O herói

“ Não posso fugir, não tenho esse direito, tenho medo, tanto medo, e nem isso devia ter, pelo menos não tanto, os meus camaradas, os meus irmãos, estão aqui comigo, e eles também não fogem, aceitam matar e morrer, porque assim tem mesmo que ser neste sítio onde estamos. Se perdermos esta guerra eles irão entrar no meu país, e para se vingarem dos deles que aqui morreram, irão matar crianças nossas, subjugar todos os meus, todos os que amo, e amarei, destruir casas, talvez a minha própria casa com os meus pais e pequeno irmão lá dentro, talvez a casa dela. Claro que rezo para que tudo isto acabe rápido, e para sobreviver pelo menos semi-ileso, tudo o que for continuar com dois braços e duas pernas e sem ficar demasiado deformado já será bastante bom para o que aqui se passa. Ainda ontem à tarde mais um camarada meu morreu numa emboscada.

Após uma explosão que também a mim cegou por uns instantes e fez com que os meus ouvidos ainda agora mantenham um agudo zumbido, ficou horrivelmente aberto e mesmo esfrangalhado, especialmente na zona do tórax e do abdómen, e apesar do insuportável calor que nos queimava todos os poros, ele gemia no chão e contorcia-se. Julgo que não de dor, as feridas eram demasiado profundas para que as extremidades nervosas ainda ordenassem alguma coisa, mas de frio e tristeza. Não dizia uma palavra, talvez não o conseguisse de todo, apenas soluçava e tentava recompor-se sem qualquer sucesso, os olhos tentavam de forma desesperada manter-se abertos, corriam-lhe lágrimas no rosto, os olhos dele tentavam viver, e as partes pretas dos olhos, rodeadas de uma íris verde clara, giravam em redor à procura de ajuda e de conforto, ou de qualquer coisa, que não o fim, até tudo o que havia de vida nele as largar. Talvez devido ao insuportável calor, ainda ele respirava aos solavancos e a vida lhe tremia nos dedos, já as moscas se tinham começado a apoderar da sua carne que tinha começado a cheirar a morte, eu estava com os olhos quase lágrimas, agarrado a ele, a ver a vida partir, tais eram as peripécias que a guerra já nos tinha feito passar juntos. E até o levantarmos daquela areia fina e árida, e o colocarmos num saco, sim, num miserável saco de plástico, a mancha de sangue em redor dele ia aumentando e impregnando-se e perdendo-se na areia, cobrindo agora a maior parte dos pequenos bocados dele, de carne e osso, e entranhas, que tinham voado aquando da explosão, e tudo isso atraia agora ainda mais das miseráveis moscas.

Tenho neste momento a absoluta certeza que a guerra é a coisa mais inumana que existe, matar-mo-nos assim uns aos outros, apenas porque nos dão ordens, somos peões, simples peões, podíamos pôr agora mesmo fim a tudo isto, sem beijos e abraços, que a memória não me permite abraçar os que mantaram os meus irmãos de armas, mas com lealdade. E todos voltaríamos para as nossas casas, para as nossas pátrias, sem o sentimento de vitória, de conquista, e de poder, mas vivos, e quão desprezada é a vitória, a conquista, e o poder, que é viver. Ou podíamos mesmo ter evitado tudo isto, preferia mil vezes o vexame das sanções económicas e da escassez de ouro, e até de Sol, na minha pátria, do que isto a que fazem um homem sujeitar-se. Na dúvida da existência de um inferno em outra vida, decidiu-se, por via das dúvidas, criar um inferno nesta mesma vida, matar, ver morrer, ver matar, sofrer tanto, e tudo isso, para mesmo em caso de vitória, nunca mais voltarmos a ser os homens que teríamos sido. Mesmo aqueles que não voltam num caixão, e que em vez de intestinos não têm um saco e em vez de olhos, óculos escuros, mesmo esses, nunca mais dormirão sem pesadelos, sem sobressaltos, sem medo e remorsos.

Mas a escolha nunca foi minha, ninguém me perguntou se queria nascer no meu país, se queria amá-lo tanto quanto o amo, embora nunca tanto como amo os que lá deixei, ninguém me perguntou se queria esta guerra, e se queria vir, e mesmo que tivessem perguntado teria dito que sim, porque nunca tinha estado em guerra nenhuma, considerava-me valente e por isso viria com confiança, peito cheio e um sorriso na cara, como aliás, acabei por vir. Mas agora que aqui estou à já 11 meses, daria tudo para voltar a casa, voltar para o junto da minha família, ou o que restar dela, com o que resta ainda de mim, e para junto dela.

Só não deserto porque não sei como suportaria se fosse capturado pelos meus próprios camaradas em plena fuga, ser preso por tentar fugir enquanto eles lutam, e dão a vida que têm pelo nosso país, pelos nossos, pela minha família e por mim, a decepção do olhar deles pousada em mim, o desprezo, e até mesmo a repulsa, seriam de uma crueza indizivél. Mas mesmo isso eu conseguiria suportar, suportaria tamanha decepção sobre mim, suportaria que cuspissem em mim, e me tomassem por um cobarde egoísta que quer é saber dele, e tudo isso suportaria apenas por causa deles, dos meus pais, do meu irmão mais novo, que tem em mim um modelo, e por causa dela, a todos eles jurei em lágrimas regressar, e a minha mãe, entre risos forçados, lá foi dizendo que voltar dentro de um caixão não contava. E ainda mais indizivel que qualquer olhar, é dizer quanto os amo a todos eles, e o quanto me custa ver-me a morrer aqui todos os dias. E assim só não deserto, só não fujo, e dou mais um passo no sentido de quebrar a promessa que lhes fiz, porque se por acaso conseguisse fazer os mais de mil quilómetros que me separam de casa, sem ser apanhado pelos meus outrora camaradas ou por uma qualquer emboscada. E uma vez chegado à minha pequena cidade me conseguisse esconder até tudo isto acabar, nunca conseguirira viver carregando o peso dos meus camaradas mortos e destruidos depois de eu ter desertado, e eles terem permanecido com talvez ainda menos vontade que eu de lá ficar, e promessas ainda mais fortes aos seus.

E claro que poderíamos todos desertar, e ir para junto das nossas famílias, e para evitar um massacre, os nossos inimigos, ou os homens do outro lado das trincheiras, poderiam desertar também, e todos viveríamos, sem mais mortes nestas estúpidas areias áridas, mas isso seria um milagre, e a primeira coisa que se aprende quando aqui se chega, é que na guerra, não há milagres. Assim, nunca poderei desertar, que por mais injusta e absurda que a guerra seja, eles, e os outros também não escolheram estar aqui. ”

O Desertor

“ Vou fugir, vou fugir com o que ainda resta de mim, falarão de mim como um traidor, e mais que isso, com tristeza e rancor quando souberem que fugi, alívio, se for apanhado. E talvez muitos sintam verdadeira pena e tristeza, por certo, pelo menos alguns sentirão, se for morto, mas se souberem que escapei ileso à longa tormenta que me aguarda, aí, uns mais, outros menos, todos sentirão inveja. E claro que nada disso me agrada, mas, mas sou egoísta, eu quero desesperadamente viver, devia amar os meus camaradas, os meus amigos, e que aqui são como irmãos, a ponto de dar a vida por cada a um deles no momento em que tal me fosse exigido, porque a vida de quem segue com uma arma ao meu aldo, ainda mais desidratado, exausto, sujo e farrapo humano que eu mesmo, vale exactamente o mesmo que a minha, quase nada, mas mesmo assim indizivelmente mais do que a vida dos que para aqui nos enviaram, e assim, ao sentir que não daria de bom grado a vida por cada um deles, ou mesmo pela vã esperança de os tentar salvar de uma morte certa, sou já um traidor, não aos olhos deles, como serei quando souberem que fugi, mas aos meus, já neste instante.

Podia dizer heroicamente que fujo para não ter que matar mais seres humanos, tão jovens, e muitos ainda com esperança na vida, a que deste lado chamamos de inimigos e recebemos com granadas e chumbo, mas qualquer um que passou pelo que eu já aqui passei, saberia que mentia. A compaixão, o amor, e mesmo a lealdade para com o inimigo não moram aqui, essas morreram, assim como morreram, os mais eloquentes filósofos, e mais débeis soldados, que aqui chegaram, o que aqui se vive é absurdo, e impossível de dizer concretamente, não há palavras que digam o que nós, todos nós, conseguimos nestas circunstâncias, infligir uns aos outros, por vontade. Assim como paradoxal é conseguir explicar porque vou fugir na próxima madrugada, faço-o por eles, e por ela, explico-o, ou tento pelo menos, para mim próprio, tenho que o fazer, porque aos meus próprios olhos sou um traidor.

Prometi-lhes que voltava, bem, isso todos prometemos antes de vir, teria sido impossível vir se não prometêssemos, e se por pelo menos por um momento, não acreditássemos também, mas não são as promessas que me fazem precisar de continuar a pelo menos respirar, porque não são as promessas que nos impedem de morrer. O que me fará desertar na próxima madrugada, e tentar sozinho atravessar mil quilómetros de terreno cuspido pelo diabo, é o que já tive, e tenho medo de não voltar a ter, e para isso quer voltasse dentro de um caixão, quer profundamente estropiado, seria igual, um caixão enterra-se, e um profundo estropiado não mais poderá ser atingido pela mesma profundidade do amor que recordo, e são sobretudo duas, as coisas que agora recordo. O olhar que os meus pais poisavam em mim sempre, como se, eu apesar de ser um miúdo normal que não tinha grandes notas na escola, e não era também especialmente bonito ou filho exemplar, fosse o ser mais especial do universo, e com um destino radioso à minha frente, fazendo assim com que acreditasse que todos os sacrifícios que faziam por mim, de sorrirem, quando lhes apetecia chorar, de serem pequenos quando também eles sonharam ser grandes, valiam a pena, fizeram com que fosse amado sem saber o que era o amor. A outra é o amor de uma mulher, o amor dela, a nossa pele queimou emaranhada ao Sol, e o Sol soube, sujeitou-se à chuva e ao gelo, e a chuva e o gelo souberam, tudo isto na mesma amena noite, no mesmo tumultuoso ardor, porque a carne é soberana dos elementos, e apenas ao amor aceita como senhor.

Não posso contudo dizer que fujo da guerra, porque toda a vida é uma guerra em que todos sofrem, e sofrem muito, que ninguém vive sem sofrer, ou a sofrer pouco, mas em que felizmente as leis humanas, censuram quem atenta contra o direito à vida. Fujo desta guerra, espectáculo de sangue comunitário, para que me enviaram e para a qual vim junto com os meus camaradas com um estúpido sorriso, porque pensávamos que íamos deixar de ser miúdos para nos tornarmos em verdadeiros homens, mas este abafado horror com o cheiro apodrecido dos restos de corpos ainda espalhados, junto com o medo de sermos os próximos a morrer e a ânsia de sermos os próximos a matar alguém, mais não fez do que tirar-nos aos poucos o que realmente tínhamos de homens, de humano. Isso, junto com a revolta de estar aqui neste jogo em que se morre a sério, em que todo o corpo treme e em que o chumbo e os estilhaços nos rasgam a nossa carne, a mando de alguém, ou de alguns, que com promessas de medalhas e de uma profunda honra que me cobriria, me enviaram para aqui, para matar, e escorraçar outros, a quem alguém, ou alguns, também para aqui os mandaram, sem que nenhum desses “semideuses” saiba, ou sequer se tenha importado em saber, o quanto valiam as nossas vidas.

Tudo isto que é tão absurdo e louco, todos nós somos loucos mas não tanto nem tão irremediavelmente, custar-me-á na próxima madrugada mais um pouco de mim, perderei a lealdade para com os iguais a mim, que não podem fugir, não todos pelo menos, que neste indistinto ponto de não retorno, nunca podem fugir todos. Assim, mesmo que a sorte não se canse de me guiar a partir da próxima alvorada, eu terei traído a morte, e tão dependente a vida é da própria morte, que não mais continuarei a viver, vou existir com eles, e com ela, até que venha o esquecimento.”

Um comentário:

ANNUNCIATA disse...

O herói e o desertor. Logo o título abre aqui margem para dúvidas. Qual será, na vida, a distância entre um e o outro? Será a nossa coragem, a nossa força ou exaustão, o limite ténue entre ambos? Acho que nos deixa a pensar. Será a deserção mais uma forma de vida marcada, ou não, pela objecção da nossa consciência? Antes de balizarmos num célere julgamento, devemos atentar a cada situação. Se o nosso apego à vida, às forças terrenas que cá deixamos, vale ou não a pena, se justificam a desistência.
E na vida corrente, do dia-a-dia, temos tantos heróis que abdicam da vida, tantos desertores, que dormem numa pseudo vida, sem culpas, sem remorsos ou contrições...
"Bem aventurados os pobres de espírito", os que pela vida passam tão leves, sem necessidade de considerar...